Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich
Descrição de chapéu tecnologia Apple

A nova propaganda da Apple é a metáfora do nosso esmagamento

Celebrar o novo é uma coisa, desqualificar a memória cultural é outra

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Obra de gênio ou mau gosto? Estratégia de marketing ou ingenuidade? Destruição cultural ou sinal de tempos distópicos? O que importa é que viralizou. Na última terça-feira (7) a Apple anunciou a sua nova linha de tablets com uma propaganda provocativa que gerou controvérsias, o que fez o vídeo rodar o mundo em pouquíssimo tempo. A maioria das pessoas que correu às redes para desabafar expressou indignação, enquanto outros, fiéis à empresa, acharam uma sacada brilhante e já estão na fila para comprar o novo tablet.

O vídeo, apelidado de "Crush", mostra uma prensa industrial esmagando objetos culturais como livros, TV, toca-discos, brinquedos, latas de tintas coloridas, instrumentos musicais, escultura, metrônomo. Esmagados por duas placas de metal, os símbolos de criatividade foram dilacerados, para dar lugar ao novo e delgado iPad, que supostamente condensaria todos eles. Nem os coitados dos emojis se salvaram.

As imagens fortes puxaram vozes furiosas e igualmente agressivas, discussão que até hoje repercute. O nível de insatisfação das pessoas, obviamente, está diretamente ligado à idade delas. Quem teve a sorte (ou azar, como pensam as gerações Z e Alfa) de viver em uma época analógica, se sentiu particularmente agredido.

Alguns críticos se empolgaram e disseram que estamos vivendo um "cataclisma" e que a Apple e outras big techs institucionalizaram a guerra contra a humanidade. O ator Hugh Grant acusou a Apple de "destruir a experiência humana".

Anúncio da Apple sobre nova geração do iPad mostra prensa hidráulica esmagando instrumentos musicais, games e material para artes plásticas
Anúncio da Apple sobre nova geração do iPad mostra prensa hidráulica esmagando instrumentos musicais, games e material para artes plásticas - Reprodução/Apple no Youtube

Exageros à parte, assistir com os próprios olhos o esmagamento de uma nostalgia de tempos em que o analógico nos servia na medida certa, é realmente perturbador. O vídeo escancara a destruição implacável de símbolos culturais e revela, em apenas 60 segundos, as transformações que acontecem há anos de forma gradativa e imperceptível. A mensagem: rendam-se à soberania tecnológica.

Para o anúncio, o antigo não presta mais, com exceção da trilha sonora de 1971, "All I Ever Need Is You" (Tudo Que Eu Preciso É Você) de Sonny & Cher, frase que fecha a propaganda —que terminaria melhor com um "tudo que eu preciso é um pouco menos de você".

A cabeça de uma escultura sendo esmagada é a metáfora perfeita: o estreitamento da mente, as pressões que não conseguimos suportar, o desprezo pela arte. As duas partes da prensa são as mandíbulas de metal que engolem os símbolos criativos e nos levam junto. As tintas são o sangue que jorra desse aperto. A dramaticidade faz parte do marketing do choque, que às vezes funciona muito bem, outras nem tanto.

Pretender encapsular experiências é roubar o sentido das coisas. É roubar os nossos sentidos: é estreitar a visão, planificar o tato, oferecer menos paladares, diminuir as memórias do olfato. É, principalmente, o cancelamento de prazeres.

Só quem teve a experiência de esperar o lançamento de um LP, mergulhar no álbum e sentir o cheiro do encarte, vai entender o prazer dobrado que a espera pode gerar. Só quem ouviu música com ruídos de um disco, viu a agulha percorrer os sulcos do vinil, no lado A e no lado B, entende o que é esse prazer analógico. Só quem colocou bombril nas antenas da TV, sujou as unhas com argila, manchou as blusas com tintas, estudou música com metrônomo e partitura, vai entender que o imperfeito combina mais com os humanos do que máquinas infalíveis. O "pronto" elimina o "caminho", o imediato gera impaciência, que gera superficialidade, que gera inautenticidade...o que nos iguala, nos achata e despreza as nossas complexidades.

Celebrar o novo é uma coisa, desqualificar instrumentos criativos e culturais é outra. É esse o equívoco da propaganda, que coloca todas as fichas no dispositivo pós-moderno —utilíssimo, mas insuficiente.

A semelhança com a campanha que lançou o Macintosh em 1984 é evidente, só que com uma mensagem inversa. Com uma cena orwelliana, a propaganda sugeria que a computação seria definitivamente uma força de libertação do domínio autoritário da sociedade. O slogan dizia: "Você verá por que 1984 não será como ‘1984’".

Só nos resta saber se hoje estamos em "1984".

Obs: Uma luz no fim do túnel: já existe uma versão do vídeo de trás para a frente, onde se vê a humanidade sendo descomprimida. Isso ainda é possível.

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