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Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

Novo álbum confirma poder inovador da cultura brasileira

'O Abismo da Prata', de Gian Correa e Os Chorões Alterados, se insere em uma longa tradição de ruptura

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Nossa história experimental continua firme. O primeiro disco lançado em 2022 que escuto com atenção confirma o poder inovador da cultura brasileira. Contra tudo de ruim.

É "O Abismo da Prata", de Gian Correa e Os Chorões Alterados (Cainã Cavalcante, Enrique Menezes, Henrique Araújo, Rafael Toledo: músicos brilhantes). Bem mais que um simples disco.

Trabalho duro realizado na pandemia. Cada uma de suas oito faixas corresponde a um mural, pintado por Apolo Torres, situado o mais próximo possível de lugar importante para a história recente do choro paulistano, inspirando textos de Renato Frei.

Cada mural contém um QR code, portal para audição de "sua" música. Assim se estabelece uma relação íntima e original entre música, palavra, imagem e espaço físico da cidade.

Gian Correa, ao lado do sanfoneiro Mestrinho, e do baterista Edu Ribeiro - Divulgação

Vai além: cada pessoa pode navegar por um outro mapa de São Paulo, onde o olhar crítico acaba revelando transformações de sua aventura modernista.

Acompanho com admiração o trabalho de Gian Correa desde sua estreia fonográfica, em 2013. Escrevi na época: "Que maravilha o disco ‘Mistura 7’ de Gian Correa. Na minha sempre exaltada opinião, já pode ser classificado como um dos melhores da história da música instrumental brasileira. (Viva também o Movimento Elefantes!) O violão de sete cordas sai do acompanhamento e passa a comandar uma experiência de vanguarda com quarteto de saxofones e pandeiro. São Paulo já aponta o futuro do samba pop e do funk carioca. Agora também consolida seu lugar central na renovação constante do choro".

Toda sua produção posterior —do "Remistura 7" ao "Big Band", passando por duo com Rogério Caetano, e ainda colaborações com Criolo ou Mestrinho e atividade como professor— demonstra vigorosamente que não errei na exaltação.

Hoje, entendo que era opinião arriscada, sem "embasamento". Eu nem sabia quem era Gian Correa, que aquele era seu primeiro disco, nem tinha muita noção do contexto que gerou aquela sonoridade empolgante. Confesso logo (provando que não sou nada confiável em julgamentos estéticos…): tinha mesmo conhecimento totalmente precário sobre a história do violão de sete cordas e do choro paulistano.

Agora sim: percebo bem como o projeto de Gian Correa se insere numa longa tradição, mas tradição de ruptura. Ainda bem.

Para muita gente, um violão de sete cordas soa "antigo", como se existisse desde que o Brasil é Brasil. Na verdade, é mais um item na longa lista de inovação instrumental na história de nossa música. Tecnologias de produção de novos barulhos bons que só existem por aqui.

Por exemplo: os laboratórios das primeiras escolas de samba, no final dos anos 1920 (portanto menos de um século), transformando latões de manteiga no subgrave dos surdos. Viva Bide! Viva Marçal! Viva tanta gente alteradora mais!

Viva Dino 7 Cordas, que ganhou este nome por cristalizar (é cristal mesmo) a linguagem de um novo instrumento para atender aos nossos desejos de baixaria sublime. Isso em meados dos anos 1950, quando em outro canto do país João Gilberto estava experimentando novas maneiras de tocar samba no violão de 6 cordas. Momento totalmente moderno.

Gian Correa segue esse espírito modernista, experimentando novas possibilidades para cada uma das sete cordas de seu instrumento de trabalho. "O Abismo da Prata" prova que ele sabe que não está sozinho, que tudo acontece com o apoio de uma grande rede de colaboração artística (que agora envolve também ponte Brasil-Israel choro-jazz, com o piano Rhodes de Shai Maestro na faixa "Suor por Matéria" e o lançamento por gravadora criada por Anat Cohen), agora bem geolocalizada nas ruas de São Paulo.

Os murais companheiros das oito músicas do disco recém-lançado homenageiam "instituições" do choro paulistano como os bares Ó do Borogodó, do Cidão, Villaggio Café, do Bacalhau, as rodas de choro do Silvinho e da loja Contemporânea, os luthiers Manoel Andrade e Agnaldo Luz, o Clube do Choro de São Paulo, a Escola de Choro de São Paulo e a Rádio Tupi, "casa" de Esmeraldino Salles, o "Esmê", referência para toda essa nova geração século 21.

Invenção de uma tradição inventiva: com "Esmê" como farol (vide o subtítulo do disco "São Paulo no Balanço do Choro", de Laércio de Freitas: "Ao Nosso Amigo Esmê"), o que se valoriza é justamente a invenção ininterrupta, o namoro com dissonâncias, o culto da velocidade ao tocar, o jogo com convenções.

E, sempre, a valorização da surpresa: em "O Abismo da Prata" somos até apresentados a um novo instrumento, a panderia, pandeiro acoplado a baquetas e pratos turcos de bateria. Lições claras, ao mesmo tempo ousadas e belas, para —cada vez mais— "experimentar o experimental".

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