Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Quem vai dizer com certeza se uma barba hipster é de direita ou esquerda?

Levante punk desconstruiu estilos e inaugurou guerra de narrativas sem fim

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Não só a pandemia me apavora...

Em 1979, três anos depois do lançamento de “Anarchy in the UK” dos Sex Pistols, Dick Hebdige publicou o livro “Subcultura: o Significado do Estilo”, propondo uma genealogia muito esperta e, desde então, influente demais do movimento punk. Como hoje todo o mundo é de certa forma punk, e o espírito punk —como discípulo perverso do situacionismo— venceu espetacularmente, vale ensaiar o resumo de seus argumentos.

Antes, as subculturas inventadas por jovens das classes trabalhadoras britânicas, interagindo com momentos de crise/sucesso do capitalismo local e com a presença crescente de imigrantes, podiam ser analisadas como sucessão quase linear de estilos formados por elementos basicamente coerentes. Quando o desemprego cresce, a alfaiataria “italiana” de mods é substituída pelas botas Dr. Martens de skinheads e assim por diante.

O levante punk bagunçou esse coreto. Não era exatamente criação de estilo novo, mas sim bricolagem de todos os anteriores. De cada um deles, tomava retalhos, e juntava tudo precariamente, até com alfinetes. Vivienne Westwood, a estilista que arquitetou a invenção/propagação da indumentária punk, dizia fazer “moda de confrontação”: “É uma maneira de contestar o sistema”.

O efeito da confrontação foi fulminante, não apenas no âmbito da história do rock ou das culturas juvenis. Resultado dramático: implosão do “significado do estilo”. Os estilos se transformaram em significantes flutuantes, reapropriados e desconstruídos por cada vez mais gente, numa guerra de narrativas sem fim. A estratégia punk parecia muito divertida para ficar confinada numa vanguarda.

A ordem era “do it yourself”? As massas responderam: “Faremos”. E fizeram. Deu no que deu.

Da contestação à banalização: pense no destino dos jeans rasgados. Ou pense na madame arquicareta que hoje não pode viver sem seu personal-tatuador. A camisa polo Fred Perry virou uniforme dos Proud Boys. O smiley das raves virou símbolo anti-vaxxer. A ciberpsicodelia ocultista fez sua entrada medonha no Capitólio dos EUA via os berros e chifres do Q Xamã. Vai ser “flutuante” assim entre mil platôs desterritorializados de Deleuze e Guattari!

As maiorias silenciosas de Baudrillard aprenderam a tagarelar filosofia pós-estruturalista. E quem pode dormir com um barulho “sem significado” ou sem sentido assim?

Estive numa conferência de Derrida na Universidade de Chicago. Parecia superstar de Andy Warhol (que sacou isso tudo bem antes). Auditório lotado. Telões para quem não conseguiu entrar se aglomerar nos gramados fora do edifício gótico fake. Todo o mundo maravilhado com toda aquela tagarelice de sotaque francês. Mas era todo o mundo “de elite” ainda. Quem ficou de fora deve ter pensado: como assim? Não fui convidado(a), tem cara de festa boa: quero desconstruir também!

Assim como o sistema de produção de celebridades foi “democratizado” pelo BBB, e qualquer pessoa pode virar megafamosa influencer, outros cercadinhos antes VIP foram ocupados (queremos um “occupy” para chamar de nosso! Como de certa forma aconteceu por aqui em junho de 2013, com tanta gente sem noção indo para a manifestação como se fosse para o desfile do bloco...), incluindo o sistema de produção de confrontação do mercado de arte contemporânea, ou de subversão ou hackeamento de aparatos midiáticos/tecnológicos.

Quem vai dizer com certeza se uma barba hipster, ou anti-hipster design (tudo hoje é desenhado…), é de direita ou de esquerda? Quem ainda se espanta ao descobrir as táticas do Luther Blissett, e o Q do Luther Blissett, sendo usadas pelo QAnon, e com muito mais impacto —danoso, certamente— na cena política contemporânea? Onde as ideias de Robert Anton Wilson, de Grant Morrison ou de Malcolm McLaren foram amarrar seus bodes?

Está tudo de ponta cabeça. Onde é a ponta? E a cabeça? Li, em entrevista de George R.R. Martin, o criador de “Game of Thrones”, seu espanto por ver a ficção científica, que antes vivia na periferia ridicularizada por críticos da Grande Literatura, hoje ocupando o mainstream do entretenimento e da produção de novas boas (e esquisitas) ideias, as com maiores poderes meméticos.

O novo relevante, ou perigoso, pode aparecer em lugares menosprezados, para os quais ninguém está olhando. Dizem que a alt-right, ou pelo menos o fórum 4chan, deu alguns de seus primeiros sinais de vida numa salinha da Otakon, reunião de fãs de cultura pop japonesa em Baltimore. Por outro lado, os fãs de pop coreano já demonstraram capacidade surpreendente para outros tipos de mobilizações políticas.

Ignore ou menospreze tudo isso por sua conta e risco imenso.

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