Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua
A quem interessa debater a origem da Covid com dados de pouca credibilidade?
Relatório que indica vazamento de laboratório é divulgado na semana em que comitê analisa competição entre EUA e China
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O ano é 2023, mas bem poderia ser 2020. Repercutiu nas manchetes de todos os grandes veículos dos EUA a mudança de entendimento do Departamento de Energia americano sobre as origens da Covid-19.
O órgão, que até então estava em cima do muro, agora afirma acreditar que o patógeno escapou de um laboratório em Wuhan, embora tenha alertado quanto ao "baixo grau de certeza" da conclusão.
O assunto não é novo, e o leitor se lembra das inúmeras teorias e divergências que circularam no início da pandemia. O relatório de agora tampouco é unânime —instadas por Joe Biden em 2021 a investigar o tema, as agências de inteligência americanas chegaram, em sua maioria, a resultados inconclusivos.
Além do Departamento de Energia, apenas o FBI diz ter evidências de um possível vazamento. Quatro outras agências e o próprio Conselho Nacional de Inteligência americano defendem a teoria de "transmissão zoonótica", ou seja, por meio da exposição natural a um animal infectado.
Quem levanta a hipótese de vazamento costuma mencionar o Instituto de Virologia de Wuhan, instalação com alto nível de biossegurança e que no passado realizou pesquisas com coronavírus. Nessa versão, um acidente teria causado o escape de amostras do Sars-CoV-2 e provocado as primeiras vítimas no mercado de frutos do mar de Huanan, cuja localização é próxima do instituto.
O rancor público devido à forma como autoridades locais chinesas trabalharam para esconder os relatos iniciais de um vírus misterioso é natural. Também é legítimo que essas mesmas pessoas pressionem seus governos a encontrar culpados pelas mortes de amigos, cônjuges e familiares. Três anos depois, no entanto, é bem possível dizer que nunca teremos respostas concretas sobre como surgiu a Covid.
Pouco afeito à transparência e acusado de recorrer às mesmas táticas que utilizou para esconder a crise do Sars em 2003, o regime chinês já não se mostrava muito favorável à ideia de uma investigação ampla e independente. A politização do tema então tornou essa apuração ainda mais complicada.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a enviar uma missão ao país para coletar amostras, entrevistar envolvidos na crise e dar algum sentido científico à investigação da origem da pandemia. A entrada dos enviados, porém, só foi autorizada muitos meses depois dos primeiros casos, quando pistas relevantes talvez já tivessem sido apagadas. Quando declarou que pretendia revisitar o caso, a OMS passou a ser ignorada, e mesmo o famigerado Instituto de Virologia decidiu deixar de cooperar.
Ideologias à parte, o vácuo deixado nas páginas dessa tragédia é lamentável. Entender como essa crise sanitária começou nos deixaria melhor preparados para enfrentar a próxima. Pequim, caso tenha as respostas, decidiu que os riscos estratégicos de revelá-las são maiores para os chineses que uma atualização nos parâmetros mundiais que nos permitam evitar uma outra pandemia no futuro.
Os americanos entendem bem isso e certamente não têm grandes esperanças de conseguir qualquer evidência nova ao denunciar suposta irresponsabilidade nos casos de Wuhan. O objetivo então parece ser outro: o entendimento de uma agência de inteligência não muda nada no cenário científico, mas ajuda a fomentar audiências sem fim no Congresso dos EUA destinadas mais a consolidar a imagem da China como potência irresponsável do que a prover respostas práticas à inquietação da sociedade.
Será coincidência que os republicanos, agora maioria na Câmara, tenham escolhido justamente esta semana para iniciar os trabalhos do comitê que pretende analisar o estado da "competição estratégica entre os EUA e o Partido Comunista"? A quem interessa trazer essa questão outra vez para o debate, espalhando informações de pouca credibilidade na imprensa mundial? Perguntas cujas respostas talvez sejam mais simples de entender que a tal origem da pandemia.
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