Igor Patrick

Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

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Descrição de chapéu Governo Biden China

Espetáculo midiático das tensões EUA-China abala chance de diálogo

Quem apoia irresponsabilidade talvez só se dê conta de que a era da conversa passou quando tiros de fato forem disparados

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No final de janeiro, o chefe do Comando de Mobilidade Aérea da Força Aérea americana, general Mike Minihan, fez uma previsão sombria: em um memorando, estimou que os Estados Unidos e a China entrariam em guerra até 2025, provavelmente devido a Taiwan.

Duas semanas depois, o noticiário foi tomado pelos relatos de um suposto balão espião chinês sobrevoando a base de Malmstrom, em Montana. Seguiram-se declarações duras por parte do governo americano, com Joe Biden prometendo fazer o que for necessário para resguardar a soberania do país.

Marinheiros resgatam destroços do balão de alta altitude chinês que foi derrubado por caça americano
Marinheiros resgatam destroços do balão de alta altitude chinês que foi derrubado por caça americano - Divulgação Marinha dos EUA via AFP

Essas notícias parecem desconectadas, mas não estão. Quem acompanha de perto as relações sino-americanas notou que o tom em Washington já faz algum tempo tornou-se excessivamente beligerante.

O noticiário cada vez mais alarmista dá à sociedade americana um senso de urgência, e o temor é reforçado por falas violentas. Nesse sentido, constata-se o que parece cada vez mais óbvio: militares americanos estão gradualmente preparando a nação para uma guerra contra a China.

Não discuto a veracidade das acusações acerca do balão chinês. Analistas mencionam que o dispositivo provavelmente estava realizando atividade de inteligência e teria capacidade de coletar informações sensíveis da base militar, como radares e canais de comunicação —Pequim diz que apenas fazia monitoramentos meteorológicos. Também não questiono a reação americana de derrubá-lo, já que em 2019 Pequim fez um escarcéu semelhante com um balão americano que invadiu o espaço aéreo chinês.

O ponto é o espetáculo midiático. Uma ocorrência assim poderia ser tratada por meio dos canais diplomáticos e militares. Congressistas até fariam algum barulho, mas um governo eficiente saberia controlar a narrativa, gerindo as preocupações de deputados e senadores com briefings sigilosos, como é de praxe, e eventualmente prestando contas aos eleitores de forma firme mas moderada.

Essa não parece ter sido a preocupação. Biden surfou na onda anti-China, consciente de que esse tipo de discurso lhe garante raro apoio bipartidário no Congresso. E ele não é o único a ganhar com tal postura.

Enquanto o mundo assiste ao lento desenrolar de um conflito potencialmente apocalíptico, há quem esteja lucrando —e muito. O Pentágono solicitou US$ 30,7 bilhões (R$ 161,7 bilhões) adicionais para o seu orçamento de 2023, chegando a astronômicos US$ 773 bilhões (R$ 4 trilhões), aumento de 4,1%.

Na prática, os americanos gastaram um valor superior ao PIB de todos os países da América Latina, sem contar as cifras de México e Brasil. Já a China gastou menos de um terço desse montante no ano passado, US$ 229 bilhões (R$ 1,2 trilhão). O alarmismo também ajuda empresas privadas: gigantes como Raytheon Technologies e Lockheed Martin embolsaram US$ 100 milhões em 2022 só com um acordo de manutenção de mísseis taiwaneses, contrato obviamente mediado pela Defesa americana.

Na academia e na política, tornou-se comum apontar a China como causa de todos os problemas do país. Em eventos de networking entre pesquisadores de think tanks ou funcionários do governo em Washington, a probabilidade de ouvir análises sem nenhuma consistência é gigante. Virou atalho fácil para gente pouco talentosa crescer na carreira, com consequências diretas na forma como políticos operam.

Restaurar o diálogo será crucial, embora esse caminho pareça cada vez mais estreito. Na guerra retórica, tem prevalecido quem grita mais, pelo menos até que tiros de fato sejam disparados. E então quem apoia tamanha irresponsabilidade talvez se dê conta de que a era da conversa pode ter passado.

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