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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Por que Putin vê a invasão da Ucrânia como uma guerra justa e sagrada

Líder achou nesse mundo perdido o arsenal ideológico para defender a ideia de uma 'Nova Rússia'

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Não é todos os dias que vemos a extrema esquerda e a extrema direita unidas pela mesma causa. Aconteceu. Vladimir Putin faz as delícias de comunistas e fascistas —e a invasão da Ucrânia sentou-os à mesma mesa. Bizarro?

Não é. Os extremos partilham a mesma doença: a nostalgia. Para a esquerda, a soviética. Para a direita, a czarista.

Em doses individuais, a nostalgia produz bons romances, bons poemas, ótimos fados. Em política, é uma receita para o desastre. Mas o que terá provocado essa febre na cabeça de Vladimir Putin?

Ilustração da coluna de João Pereira Coutinho do dia 28 de fevereiro de 2022 - Abu

Os extremistas não têm dúvidas: a culpa é dos Estados Unidos, da União Europeia e da expansão da Otan para leste. Se os três tivessem ficado por Berlim, sem jamais avançarem um milímetro, o nosso Vladimir estaria sossegadamente em Moscou, tocando balalaica e bebendo vodca.

Podemos discutir se, após a queda do Muro de Berlim e da desagregação da União Soviética, não terão sido criadas falsas expectativas de que a Otan jamais abarcaria as ex-repúblicas soviéticas. Voltarei a esse assunto em próximas colunas.

Coisa diferente, porém, é negar o direito à autodeterminação de países livres, independentes e soberanos.

A febre nostálgica não se explica com mudanças geopolíticas, mas sim com ideias. As que Putin meteu na cabeça e que o levaram até aqui.

Compreender essas ideias é a tarefa que Michel Eltchaninoff, editor da revista Philosophie, traz em "Inside the Mind of Vladimir Putin".

Desconhecia o autor, mas um artigo dele para o Guardian me fez correr atrás do livro. Apesar do título bombástico (ah, as editoras...), é um trabalho sério de arqueologia intelectual que mostra como se deu a "virada conservadora" de Putin na segunda década do século 21 ("virada reacionária" talvez fosse mais rigoroso).

Estruturalmente, e apesar de ter servido à KGB, Putin nunca foi comunista (nem marxista-leninista). Mas a União Soviética legou ao jovem Vladimir uma escola de virtudes e algumas certezas trágicas. Entre as virtudes, o patriotismo. Entre as tragédias, a dispersão do povo russo por novas repúblicas depois do colapso.

Quando chegou ao poder, na virada do milênio, Putin tentou um compromisso entre os passados recente e remoto. Até simbolicamente: o hino da Federação Russa teria a melodia da URSS, mas as palavras seriam reescritas pelo mesmo autor que escrevera o hino soviético —Sergey Mikhalkov.

Para Michel Eltchaninoff, o compromisso será abandonado no segundo mandato (a partir de 2004) —e enterrado no terceiro (a partir de 2012).

Cada vez mais influenciado pela direita tradicionalista russa da pré-revolução, três autores ressaltam Eltchaninoff: Ivan Ilyin, Konstantin Leontiev e Nikolay Danilevsky.

Não cabe aqui uma análise detalhada de cada um deles. Em resumo, Putin achou nesse mundo perdido o arsenal ideológico para defender a ideia de uma "Nova Rússia": uma civilização purgada da decadência e do niilismo das democracias ocidentais, solidamente religiosa, e capaz de congregar povos eslavos sob uma mesma batuta. Isso implica recuperar os territórios perdidos após 1991.

Como Ivan Ilyin alertara, ele que sempre foi antibolchevique (Franco e Salazar eram suas referências após um breve flerte com Hitler), o fim do regime comunista seria aproveitado pelo Ocidente para abocanhar a Ucrânia, os Estados bálticos, o Cáucaso inteiro.

Seria o desmembramento dessa realidade histórica, cultural e espiritual da Grande Rússia, o último baluarte da civilização cristã.

Somente um líder iluminado —um "Guia", um "ditador democrático", nas palavras de Ilyin— seria capaz de preservar a alma da russianidade.

Escusado será dizer que Putin se vê como esse guia —e a invasão da Ucrânia, como uma guerra justa (e sagrada).

Hoje, somos todos "marxistas"; porque todos acreditamos que a economia é a explicação última do mundo.

Antes fosse —a economia, pelo menos, assenta num pressuposto de racionalidade. Infelizmente para a Ucrânia, Belarus, Geórgia e, talvez, Moldávia e os Estados bálticos, as ideias que animam Putin não podem ser vencidas pela diplomacia ou pelas sanções.

Parafraseando um sábio, nada é mais poderoso do que uma ideia perigosa que chegou no tempo errado.

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