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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Vítimas da guerra na Ucrânia são notadas apenas por serem brancas?

Explicar a comoção do Ocidente com o conflito pela lente da branquitude é confundir o acessório com o essencial

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Há um novo elefante no meio da sala —será que o mundo chora as vítimas da guerra na Ucrânia porque elas são brancas?

A pergunta é formulada por Michael Shank na revista Time. A resposta é afirmativa. Quando há agressões no Oriente Médio, na Ásia, na África, cometidas por nativos ou potências ocidentais, ninguém verte uma lágrima pelos mortos e refugiados.

Mas como é no hemisfério norte, mais perto de casa, envolvendo comunidades cristãs, sentimos uma emoção especial.

Ilustração publicada em 7 de março - Angelo Abu

Não discordo de Shank sobre esse ponto. Proximidade sempre foi empatia. Aquilo que nos torna humanos é a capacidade de nos imaginarmos no lugar dos outros?

Certo. Mas Adam Smith, que teorizou sobre o assunto, não era propriamente um cosmopolita. Essa "simpatia", para usar as palavras do filósofo, manifestava-se em círculos cada vez mais crescentes —começamos por cuidar de nós; depois, da nossa família; depois, da nossa comunidade. Eventualmente, de outras comunidades; dificilmente, de toda a humanidade.

Haverá exceções, que quase derrotam a teoria de Michael Shank: ninguém tem dúvidas que as imagens da brutalidade americana no Vietnã —como esquecer a criança nua correndo no asfalto depois de um bombardeamento de napalm?— levantaram os Estados Unidos contra o governo e apressaram o fim da guerra.

Mas é um fato, talvez injusto, que a natureza humana é o que é. Pobre e limitada com realidades distantes.

Num ponto, porém, Shank não tem razão: o que se passa na Ucrânia não é comparável a guerras recentes em outras paragens mais a sul.

Para ficarmos apenas nos exemplos mais citados: invadir o Afeganistão não foi por capricho. Aconteceu depois do 11 de Setembro porque o Talibã protegia os terroristas.

Em 2022, não consta que a Ucrânia tenha derrubado duas torres em Moscou com dois aviões comerciais sequestrados.

No Iraque, a decisão de invadir será mais problemática, ou até injustificada, ou até criminosa —é possível arguir qualquer dessas opções.

Mas Volodimir Zelenski não é Saddam Hussein. Também não consta que tenha usado armas químicas contra os próprios ucranianos, tal como Saddam fez contra os curdos.

Se existe uma emoção maior é porque existe uma ambiguidade menor na análise da guerra: foi Putin quem decidiu invadir um país democrático. É Putin quem bombardeia populações civis. É ele quem ameaça a paz na Europa, por mais erros que a Otan tenha cometido no período pós-Guerra Fria.

Mas a atenção obsessiva com a Ucrânia também se explica por dois fatores paradoxais: a situação é nova e a situação não é nova.

É nova porque Putin fala de um ataque nuclear com uma ligeireza preocupante. Esquecendo que a destruição é mútua e é assegurada —na cabeça de Putin, ele ficará intacto depois de apertar o botão. É número de teatro para enxotar qualquer ingerência da Otan?

Admito. Mas alguém pode censurar as opiniões públicas ocidentais por temerem, com particular estridência, o dia do juízo final?

Mas a situação não é nova porque o filme já foi visto antes —na Europa. A forma como Putin manipula a história, invocando mitos e ressentimentos para justificar o seu revanchismo, foi sempre a antecâmera de grandes conflitos.

Como lembra a historiadora Margaret MacMillan em "The Uses and Abuses of History" —ou os usos e abusos da história—, Mussolini prometeu aos italianos um regresso à grandeza perdida do Império Romano.

Hitler recuou até Tácito para reconstruir a mítica raça germânica, atraiçoada pelos "criminosos de novembro" (que assinaram o armistício e, depois, o Tratado de Versalhes).

Até Stálin, insuspeito de simpatias czaristas, gostava de mostrar aos seus convidados que o mapa do Império Soviético coincidia, quase na perfeição, com o antigo mapa do Império Russo.

A melodia de Putin desperta más memórias, eis o ponto. As suas ações também —reclamar a região do Donbass, em nome da população russa "perseguida", para depois invadir o país inteiro, parece uma cópia de 1938-1939, quando Hitler começou por exigir os Sudetos, em nome dos alemães "perseguidos", para depois devorar a Tchecoslováquia (e a Polônia).

Não admira que os países do Leste Europeu estejam em pânico. Eles se lembram.

Explicar a comoção do Ocidente com a Ucrânia pela lente da branquitude é confundir o acessório com o essencial.

Na paleta desta guerra, há cores para todos os gostos.

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