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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Perdoo artistas que são monstros, mas não monstros artísticos

Se Polanski fizesse apologia do estupro, eu o veria como vejo Leni Riefenstahl

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"Honestamente, sempre soube separar as águas e não exijo que um grande criador seja um modelo de santidade. Nem sequer um cidadão decente. Para essas matérias, há a polícia e os tribunais."

Assim falou Little Couto, com sua inconsciência habitual, na coluna da semana passada. Os leitores desceram o sarrafo.

Corrijo: as leitoras. Os nomes do crime são, sem surpresas, masculinos. Roman Polanski, Woody Allen, Picasso, Gauguin. Seus crimes, ou alegados crimes, contaminam tudo. Mas eu sou homem e por isso desculpo esses homens, acusaram. Apesar de ter invocado a polícia e os tribunais.

Respeito as sensibilidades. Mas que diriam essas leitoras se eu, seguindo o raciocínio delas, argumentasse que não é possível ler os romances de Doris Lessing ou escutar as canções de Joni Mitchell depois de sabermos que a primeira abandonou os dois filhos na África para seguir uma carreira literária em Londres e a segunda entregou a filha para adoção?

Será que essas condutas privadas, apesar de não terem a mesma gravidade dos crimes imputados a certos machos, também "mancham" suas obras?

Ou a conta do patriarcado aguenta tudo —e os abandonos de Lessing e Mitchell são até heroicos?

Repito minha posição de princípio: continuo assistindo, de sorriso no rosto, os filmes de Polanski ou de Woody Allen; leio, de alma leve, os livros de Doris Lessing; e nunca me passaria pela cabeça deixar de escutar os discos de Joni Mitchell.

Deve haver algum distúrbio neuronal em mim para que a obra, e só a obra, seja objeto da minha atenção.

A escritora Claire Dederer, em livro que tem agitado as águas, discorda. O título é "Monsters: a Fan’s Dilemma" (Monstros: um dilema de fã) e a autora confessa: ama Polanski, ama Woody Allen. Também ama Doris Lessing e Joni Mitchell (aliás, foi graças a ela que soube dos abandonos maternais de ambas).

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 15 de maio de 2023 - Angelo Abu

Mas existe em todos esses nomes uma "mancha" que é impossível apagar. Uma "mancha" que é indiferente à nossa vontade.

Claire Dederer tem até uma lista —um "Index", para sermos canônicos— onde vai anotando os autores que ama e que, em princípio, deveria odiar: Naipaul, Norman Mailer, William Burroughs.

A "mancha" é uma disrupção da experiência estética, porque é impossível apreciar o trabalho desses criadores nos seus próprios termos.

O desconforto é tão problemático que a autora confessa que tem mais facilidade em consumir os filmes de Polanski pré-violação do que os filmes que vieram a seguir.

Se eu fosse um cínico, diria que não é difícil: os grandes filmes de Polanski, de fato, são anteriores a 1977, ano do crime contra a adolescente Samantha Geimer.

Mas divago. E entendo Claire Dederer: a experiência estética é sempre uma experiência relativa e, agora que penso nisso, não sou um exemplo de imperturbabilidade artística. Leni Riefenstahl, a diretora de cinema do Terceiro Reich, é aclamada por seu talento formal?

Sou incapaz de o apreciar: a mensagem, de tão odiosa, contamina tudo. Uma contradição?

Não creio. Se Polanski filmasse apologias da violação, por mais belas que fossem, minha repulsa seria igual.

Eis, talvez, a chave da minha arte poética: perdoo artistas que são monstros, mas não monstros artísticos.

Seja como for, minha discordância principal com Claire Dederer não está na ambiguidade que ela sente perante certos nomes do seu panteão. Está na forma sentimental como ela procura resolver essa ambiguidade.

O dilema do fã é um problema de amor, escreve ela. Amamos pessoas nas nossas vidas que não são recomendáveis. Por quê? Ah, por que. O coração tem razões que a razão etc. e tal.

O mesmo acontece com nossos ídolos.

Que absurdo, Claire! Existe uma diferença entre as pessoas problemáticas que eu amo na vida e a vida problemática dos artistas que amo. Eu não tenho de viver com eles.

Esse é o luxo do fã, não o dilema: por piores que sejam suas vidas privadas, interessa-me apenas o melhor que fizeram em público e para o público.

No fim das contas, só isso perdurará. Daqui a 200 ou 300 anos, se ainda existir arte e olhos para apreciá-la, as condutas privadas de certos criadores terão a mesma importância para as gerações vindouras que os crimes de Caravaggio ou Benvenuto Cellini. Quais crimes?

Precisamente.

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