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Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Chico Buarque cria, em livro de contos, mal-estar que brota da delicadeza

Mar de vulgaridades que inundou o país torna exceção os momentos de elegância e leveza

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Há uma piadinha assim:

Um brasileiro pergunta para a recepcionista de hotel: "Ô minha! Tem algum lugar aí para dar uma cagada bem foda?" A moça responde: "É simples. O senhor segue por aquele corredor e logo verá, à direita, uma porta com uma placa onde está escrito: cavalheiros. Apesar disso, pode entrar".

A cafajestice, me parece, tem um traço ideológico bolsonarista. Basta lembrar aquele vídeo do conselho de ministros, em que a discussão era emporcalhada pelas palavras mais vulgares, obscenas, tão sórdidas quanto as propostas que se discutiam ali. Essas expressões revelam a natureza moral do cotidiano no qual essas pessoas estão imersas.

Ela, a cafajestice, não se limita ao bolsonarismo, decerto, mas institucionalizou-se, tornou-se monumental e proclamada. A grosseria, a incivilidade, parece ganhar terreno em Banânia, e cada vez mais, a elegância se afasta.

Jair Bolsonaro fala durante cerimônia em Brasília - 25.fev.22 - Adriano Machado/Reuters

A palavra elegância tem alguma coisa de envelhecido e fora de moda: mau sinal.

Não me refiro às roupas de grife, à ostentação de riqueza, aos gestos afetados. Isso é o contrário da elegância. É o brega.

A elegância é natural. Ela vem de dentro, é filha do respeito, da atenção para com o outro, da delicadeza em relação ao mundo que nos cerca. Não é fabricada. É orgânica.

Quando penso em elegância natural, vem à minha lembrança uma dupla de cantores que fez muito sucesso: Cascatinha e Inhana. Basta ver o vídeo em que cantam a guarânia "Índia" para saber o que é a elegância natural.

Inhana, com seu xale em volta do pescoço, Cascatinha, no porte impecável de seu paletó, e sobretudo, a contenção dos gestos, a concentração na melodia, na articulação de cada palavra, sem contar a maravilhosa combinação da voz doce de Inhana sobre o tom rouco de Cascatinha. Eles herdam a postura caipira —não é um paradoxo, há uma admirável elegância caipira— do casal que Almeida Jr. captou em "O Violeiro".

A noção de elegância, que se associa à delicadeza, é muito pensada como superficialidade, como barreira para algo mais profundo ou vigoroso, que seria reservado ao que é pesado ou mesmo à truculência. Isso é, evidentemente, falso. Como demonstram bem os escritores do século 18, como demonstram Proust ou Machado de Assis.

A perda da elegância, questão muito menos frívola do que parece, esse mar nauseabundo, malcheiroso, de vulgaridades que inundou o país, torna exceção os momentos de delicadeza.

Estas reflexões me vieram ao espírito ao terminar, há pouco, de ler "Anos de Chumbo", que Chico Buarque lançou em 2021.

A impressão primeira que me fica é esta: elegância e delicadeza. Chico Buarque escreve com simplicidade, sem buscar efeitos dramáticos ou choques. O tom é pausado, confidencial, em frases claras, construídas com um sutil equilíbrio: "Era grande a possibilidade de dar tudo errado, mas ela disse que eu não tinha nada a perder" é a abertura de um desses contos perfeitos, "O Sítio". Ou ainda: "Meu tio veio me buscar em casa com seu carro novo", em "Meu Tio", que vale bem o "Muito tempo, eu me deitei cedo", de Proust.

Chico Buarque avança, em todas essas histórias, com uma neutralidade calma e um pouco melancólica. As palavras servem para descrever com sobriedade os ambientes, os espaços de embarque num aeroporto, por exemplo, ou a bandeja com açucareiro, bule e xícaras de café.

O início pode ser misterioso: uma batalha do exército confederado norte-americano, mas no dia 9 de maio de 1971. O mistério se elucida paulatinamente, cada vez mais doloroso, para o personagem central, e para o mundo em que ele, e nós, vivemos.

A simplicidade despretensiosa vai criando situações que parecem perfeitamente naturais. Mas, aos poucos, pontos decisivos vão sendo revelados, levando a leitura, de modo imperceptível, para situações terríveis, fantasmagóricas.

Vão chegando indícios que criam climas deletérios, dos tempos da ditadura, mas correspondendo tanto ao Brasil de hoje. Por vezes, é uma reviravolta mais importante, que ilumina a história de frente para trás, e dá sentido ao que foi contado.

É um livro de crítica, de denúncia, sem dúvida, mas essas palavras —crítica, denúncia— são pesadas demais, panfletárias demais, para qualificar o que ocorre nessas páginas. É pela intuição, pela simpatia, ou pela aversão, que "Anos de Chumbo" vai a fundo. Procede por meio de uma escrita rica nas nuanças, com pequenos toques, aéreos e nítidos.

O leitor é tomado por mal-estar, má consciência, nojo, mas, justamente, tudo isso brotando da elegância, da delicadeza, da leveza, em claridade furtiva. Profundidade mozartiana —com perdão do paralelo afetado, mas é o que me ocorre— capaz de levar a despenhadeiros de angústia sem perder o refinamento.

Sinto que é um pouco estranho falar de delicadeza e elegância em tempos de guerra. Mas, como se sabe, o diabo está nas coisas miúdas.

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