Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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O que impressiona em Van Gogh é seu equilíbrio em meio a furacões interiores

Telas do pintor, que se suicidou aos 37 anos, demonstram lucidez frente a crises mentais

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Quem cortou a orelha de Van Gogh? Recentemente, um “buzz” na imprensa anunciava que não foi ele mesmo, mas o pintor Gauguin. A cultura tem também suas fake news. “Van Gogh não se matou, foi assassinado!”, “a Mona Lisa era um homem!” e daí para a frente.

As vidas desses autores ou dessas obras tiveram uma enorme celebridade por causa de seu caráter animado e dramático. Em trajetórias mais serenas —vamos dizer, como as de um Corot ou mesmo de um Cézanne— a projeção pública é menor, porque os lances espetaculares não existem.

A questão é que esses aspectos mais agudos, que chamam a atenção, que provocam um entorno de lendas ou sensacionalismos, perturbam nossa percepção daquilo que deveria ser a verdadeira importância, ou seja, as obras.

Retomo o caso de van Gogh, que é o exemplo mais claro disso. Sua vida de artista maldito e isolado, marcada pela loucura e por crises terríveis; sua relação afetuosa com o irmão Theo, que o sustentava; suas telas, que não eram apreciadas e que não se vendiam; e o contraste com a celebridade que ele adquiriu depois da morte, com os valores extravagantes que seus quadros ou desenhos atingem nos grandes leilões, transformaram-no em um personagem retomado constantemente pela literatura e pelo cinema.

Esse personagem atrai especulações em busca de sensacionalismo, o que não facilita as coisas.

Van Gogh foi louco, angustiado e suicida. Isso dirige nosso olhar de antemão para sentirmos nele uma desordem explosiva. Ora, em meio às tempestades de sua existência, o que impressiona é seu equilíbrio. Um equilíbrio de corda bamba, mas sempre presente, e que determinou a construção de sua obra.

Van Gogh deixou um grande número de cartas, para seu irmão, parentes, amigos: quase 900 chegaram até nós. Nunca são formais ou superficiais. Ele faz do papel seu confidente, quer compartilhar com os outros aquilo que o atormenta ou o entusiasma. Reflete sobre a arte do seu tempo. Tem um poder de análise muito agudo, até mesmo sobre suas próprias crises mentais.

É lúcido, portanto. Uma lucidez que o governa em meio aos seus furacões interiores.

Não foi um menino prodígio, e sua vocação artística chegou tarde. Começou a desenhar para valer com 25 anos e pegou no pincel, pela primeira vez, com 27. Teve 9 anos para pintar as quase 900 telas que deixou, em uma bela média de 100 por ano, quando se suicidou.

Homem olha para autorretrato de Vincent Van Gogh no Museu Van Gogh de Amsterdã, Holanda - Piroschka van de Wouw - 20.jan.20/Reuters

Seria um erro pensar que Van Gogh tenha sido um gênio espontâneo e que sua obra revele um expressionismo desordenado. Tanto na sua formação quanto no resultado obtido, as pinturas de Van Gogh demonstram a mesma lucidez e equilíbrio no meio das tormentas convulsivas. Em tudo, é como se ele caminhasse por um fio frágil e tenso, até que, enfim, esse fio se rompa.

Van Gogh não teve um aprendizado formal. Isso não quer dizer que aprendeu à maneira desordenada dos autodidatas.

Avançou por etapas muito precisas. Primeiro, o desenho de figuras, depois, o estudo do espaço e da perspectiva. Quando se sentiu seguro o bastante, passou para a pintura a óleo. Começou na Holanda, com tons escuros, como o realismo da época fazia. Ao se mudar para Paris, descobriu os impressionistas e, com eles, a luz que colore.

Van Gogh sempre é muito seguro na composição de suas pinturas. Estrutura volumes, equilibra verticais, horizontais e oblíquas. Quando vai para Arles, sob o sol da Provença, e diante da paisagem tão clássica, atinge ele próprio seu classicismo, e as telas reforçam a solidez e o colorido intenso.

Uma solidez que aguentará o tranco da internação em Saint-Rémy, e os tempos que precederam seu suicídio em Auvers. Nesse período em que está muito abalado, torce, retorce as estruturas das composições, sem nunca as romper, porém. É suficiente dar uma olhada no quadro em que pintou a igreja de Auvers: o poder da obra está entre a estrutura que não cede e as forças convulsivas que a habitam.

A própria maneira como Van Gogh dispõe as pinceladas mostra como tudo nasce das tensões entre a ordem e o dinamismo das formas expressivas. Essas pinceladas nunca são atiradas na fúria do gesto caótico e inconsciente: elas seguem paralelismos, cruzamentos e se inserem em movimentos claramente traçados —basta observar com atenção a célebre "A Noite Estrelada" de St. Rémy para perceber como tudo se dá em uma ordem viva e movente.

pintura de noite estrelada
'A Noite Estrelada', pintura de Vincent Van Gogh de 1889 - MoMA Nova York/Reprodução

Passamos também, nós, coletivamente, por momentos terríveis. Assinalo um título chocante da Folha de 7 de abril: “Receita Federal diz que pobres não leem livros e defende aumentar tributação”.

Lembro de Castro Alves e de seu “O Livro e a América”: “Oh! Bendito o que semeia / Livros... livros à mão cheia... / E manda o povo pensar!”.


A coluna passa a ser publicada mensalmente no site da Folha, às quintas-feiras.

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