Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.
A dor pelos fiéis mortos na estrada
Como homenagem aos corintianos que não voltaram do Mineirão, traídos pela paixão
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Reproduzo aqui, excepcionalmente, o texto publicado em meu blog no UOL.
Porque, diante do acidente com o ônibus que matou sete torcedores corintianos na volta do Mineirão, não há Espanha campeã mundial, nem nada, que seja mais tocante.
O amor do torcedor pelo seu time conduz a caminhos misteriosos, repletos de curvas, desvios, sofrimentos e extravasamentos.
Os que ficam jamais se conformarão. Os que foram viveram a última alegria no gol de empate, no último minuto.
O texto:
"Corria o ano de 1969, e o Corinthians de Roberto Rivellino disputaria a decisão do Robertão, o precursor do Brasileirão, em Belo Horizonte, contra o Cruzeiro de Tostāo e Dirceu Lopes.
Era dezembro, e eu fazia cursinho pré-vestibular para tentar entrar na faculdade de ciências sociais da USP.
No domingo da final haveria o exame simulado do cursinho para avaliar o desempenho dos candidatos.
E no sábado, à meia-noite, sairia do Parque São Jorge a caravana da Fiel para o Mineirão.
Não tive dúvida.
Disse a meu pai que passaria a noite estudando na casa de um colega e tomei um dos ônibus, madrugada adentro em algazarra pela Fernão Dias.
Só um integrante do busão viajou calado: exatamente o que viajava ao meu lado, no banco do corredor.
Era enorme, gordo e silente.
No caminho, em duas paradas para comer alguma coisa e ir ao banheiro, os restaurantes da estrada foram contemplados com calotes por boa parte dos torcedores, que saíram sem pagar.
Ali pelas 7 e meia da manhã a fila de ônibus entrou em BH com as bandeiras desfraldadas pelas janelas para acordar a capital mineira.
Havia 15 anos que o corintiano não soltava o grito de campeão, e daquele dia não passaria.
Pois passou.
Evaldo abriu o placar logo no primeiro minuto, Rivellino empatou 35 minutos depois, mas Dirceu Lopes, o melhor em campo, na metade do segundo tempo, fez 2 a 1 para o timaço celeste.
Para piorar, em São Paulo, o Palmeiras derrotava o Botafogo e era o campeão.
Nosso ônibus foi apedrejado na saída do estádio, o para-brisa ficou destroçado, o motorista levou horas para fazer o boletim de ocorrência, e o caminho de volta foi torturante, porque, em pleno verão, o vento dentro do ônibus era gelado, ninguém estava agasalhado, os restaurantes, precavidos, estavam fechados para não ser tungados novamente e o cidadão ao meu lado, que na ida ficou calado, na volta calado permanecia.
Amanhecia em São Paulo quando o ônibus, solitário, entrou na cidade.
Foi então que senti a enorme mão do mudo companheiro de viagem apertar minha coxa e lamentar, com a voz do fundo d’alma: ‘Briguei com minhas duas mulhé para ir ao jogo, e o Coringão ainda me perde!’.
Antes que eu fizesse qualquer comentário, ele se levantou e gritou: ‘É o Coringão, é o Coringão!’.
O bastante para que novamente as bandeiras fossem postas para fora da janela em cena insólita, na São Paulo que tinha o rival como campeão: ‘Corinthians, Corinthians!’.
Ao chegar à minha casa, meu pai estava no portão.
Olhou para mim com olhar pesaroso e disse: ‘Tudo isso, mentiu pra mim, pra perder o título?’.
Menos mau que, em janeiro, entrei na USP.
Relembro o episódio em homenagem aos torcedores que morreram na mesma Fernão Dias ao voltar de mais um Cruzeiro x Corinthians e que, felizes com o empate no minuto derradeiro, não poderão contar sua aventura."
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