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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Como a literatura ajuda a dar sentido à vida e também à própria arte

Tragédias do teatro alemão do século 18 emprestam sentido à experiência moderna

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Aproveitando das férias de final de ano para aprofundar as pesquisas de doutorado, dei-me a oportunidade de revisar as primeiras páginas da minha tese sobre o conceito de autonomia individual em relação às mulheres da obra de Goethe (1749-1832). Tal a personagem Bela Alma em "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister": uma mulher cujo extremo fervor religioso ora inibe ora estimula a expressão de independência e a sua busca por autoconhecimento.

Neste esforço, cheguei à conclusão de que precisaria rever a estrutura do manuscrito, ora alterando a ordem de alguns capítulos ora me desfazendo temporariamente de seções inteiras; na intenção de melhor expressar-me. Afinal escrever tem dessas coisas: a gente recorta dali, cola daqui e apaga acolá até encontrar uma forma de fechar o argumento.

Foi assim que atentei para o que faltava no texto e retomei as leituras, dedicando-me, uma vez mais, ao estudo da tragédia no âmbito cultural alemão do final do século 18. Li trabalhos como a versão de Goethe para "Ifigênia em Tauris": essencial para compreendermos o papel do teatro na articulação de reflexões filosóficas que se tornaram centrais para o projeto iluminista e para emprestarmos sentido à nossa experiência da modernidade; tal a capacidade do indivíduo para solucionar dilemas morais a partir do uso da razão e do domínio das emoções.

Retrato do autor Johann Wolfgang von Goethe feito por Georg Melchior Kraust, por volta de 1775 - Reprodução

Quando pensamos em tragédias, nos domina a lembrança dos antigos poetas gregos; alguns dos quais se tornaram consagrados em nossa cultura de massa graças à apropriação da literatura clássica pela psicanálise. Desta, a partir da literatura e do cinema da primeira metade do século 20; em filmes como "O Sétimo Véu" e "Carta de uma Desconhecida" —este último baseado na obra homônima do escritor austríaco Stefan Zweig (1881- 1942).

Através da popularização da obra de Sigmund Freud (1856-1939), fomos encorajados a discutir o comportamento humano com base em ideias como o complexo de Édipo; tese sobre relacionamentos familiares desenvolvida a partir da sua interpretação de "Édipo Rei", tragédia de Sófocles sobre um homem que, ao descobrir ter assassinado o pai e se ver casado com a mãe, resolve arrancar os próprios olhos e partir sem rumo para uma vida em exílio.

Recordamo-nos igualmente de Shakespeare (1564-1616) e de suas célebres criações: Hamlet, o jovem príncipe da Dinamarca atormentado pela morte do pai; Macbeth, o nobre escocês que almeja se tornar rei a fino custo; e Lear, o rei cuja senilidade põe em risco a sua autoridade e o bem-estar de uma de suas filhas.

No entanto, dificilmente nos vêm à lembrança escritores alemães como Friedrich Schiller (1759-1805), Goethe e, principalmente, Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), cujas criações —ao exemplo de "Emília Galotti" e "Nathan, O Sábio"— ilustram os dilemas íntimos e familiares da classe média da época, ressaltando a conturbada dinâmica entre a vida pública e a privada; tal o conflito entre o homem comum e a autoridade dos príncipes e da religião sobre as vidas dos indivíduos.

Em "Emília Galotti", encontramos uma jovem que, no dia do seu casamento, torna-se  vítima da obsessão de um príncipe que deseja fazer dela sua amante; e dos escrúpulos do pai, cuja rigidez moral, em vez de proteger a filha contra as armadilhas da vida adulta, a infantiliza ao ponto de retirar-lhe qualquer capacidade para agir em autodefesa. Já em "Nathan", temos a história de um mercador judeu que convenceu Saladino de que retidão moral e expressões de bondade independem da fé professada.

Segundo Goethe, a mensagem da obra de Lessing como um todo e, principalmente, de "Nathan", seria imprimir no público o sentimento de que a tolerância e a misericórdia deveriam se tornar valores sagrados para a sociedade alemã. Ora, as tragédias da época cumpririam o papel de educar a população sobre os princípios máximos do iluminismo: autonomia, tolerância e cosmopolitismo.

Assim, em "Theater der Deutschen" —coletânea de peças teatrais publicada em 1768—, encontramos o seguinte comentário: “O real objetivo do teatro não é proporcionar um passatempo ruinoso (...), mas o de contribuir para o aperfeiçoamento moral que, em nosso meio, especialmente, tornou-se necessário”.

Neste diapasão, temos de concordar com o pesquisador inglês T.J. Reed —autor de "Light in Germany: Scenes From an Unknown Enlightenment"—, para quem os escritores alemães acreditavam desencadear mudanças sociais profundas e duradouras sem que o povo se tornasse refém dos excessos revolucionários franceses que se seguiram à Queda da Bastilha.

Embora muitas vezes sejam consideradas inferiores às tragédias antigas e ao teatro elisabetano —eu mesma prefiro Shakespeare a Lessing—, ainda assim essas criações do Iluminismo alemão se aproximam da nossa realidade, sem nos dar a mesma sensação de estranhamento moral de um texto antigo.

Ora, mesmo as versões de tragédias gregas adaptadas para o teatro alemão —como a versão de Goethe para "Ifigênia"— são releituras no intuito de nos ajudar a compreender a situação do indivíduo moderno; em um mundo sem deuses ou suseranos. Desta forma, as tragédias alemãs do século 18 cumprem o importante papel em nossa tentativa de emprestar sentido à própria literatura. Afinal, qual é a função da arte em nossas vidas: entreter, educar ou ambas?

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