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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Neste Natal, visite um sebo!

Frequentador aprecia cheiro dos livros e procura saber das novas aquisições e suas origens

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Em julho deste ano estive em São Paulo e, como não poderia deixar de ser, visitei o sebo Desculpe a Poeira para colocar o papo em dia com meu amigo de Instagram Ricardo Lombardi e suprir as minhas estantes com títulos de literatura brasileira impossíveis de adquirir na Irlanda. 

Durante toda a minha vida frequentei sebos, seja porque precisava fazer render os poucos trocados que recebia dos meus pais ou porque a maioria dos livros que despertavam o meu interesse se encontrava fora de catálogo e ausente das prateleiras das principais livrarias.

No final da minha infância, os sebos se tornaram a extensão da biblioteca do meu colégio: um lugar para o exercício da fantasia, onde eu poderia fugir das responsabilidades escolares e das obrigações domésticas para usufruir das companhias que realmente me interessavam.

O jornalista Ricardo Lombardi no sebo Desculpe a Poeira, em São Paulo - Karime Xavier - 12.fev.2014/Folhapress

Nessa época, morávamos em Recife, próximo ao antigo endereço de Clarice Lispector, na praça Maciel Pinheiro. Além da antiga sinagoga asquenaze que frequentávamos em ocasiões festivas, gozávamos da vantagem de estar em uma encruzilhada de bancas de revistas, livrarias e sebos espalhados pelo bairro, dentre eles o tradicional Sebo Brandão, no oitão da Igreja Matriz da Boa Vista.

Por se tratar da livraria mais próxima de casa, logo recebi permissão dos meus pais para visitá-la sozinha sob o olhar atento da minha mãe que, do apartamento, monitorava os meus passos pela rua até que eu desaparecesse na esquina.

Em Brandão —na companhia da secretária do estabelecimento e de um velho livreiro que jurava ter conhecido Jean-Paul Sartre durante a sua famosa passagem pelo Nordeste do Brasil—, aprendi que um livro poderia ter edições e impressões diversas; interessantes não somente pelos trabalhos de arte gráfica, como também pela excelência dos textos introdutórios e do brilhantismo das suas traduções.

Tudo isso aprendi quando menina, no tête-à-tête com os funcionários do sebo e com os clientes mais velhos: universitários, membros do movimento estudantil e jornalistas que dali faziam ponto de encontros.

Daquela época ainda guardo as versões do poeta Cristiano Martins para "A Divina Comédia"; de Torrieri Guimarães para o "Decamerão"; bem como a do célebre germanista Paulo Quintela para "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", de Rainer Maria Rilke.

Outra importante lição que aprendi com os frequentadores de Brandão e que muito me serviu durante a vida —principalmente quando morei no Oriente Médio— foi que no sebo tudo se negocia. Um livreiro experiente reconhece o naipe do leitor pela estranheza dos seus pedidos —como no dia em que encomendei uma gramática de russo para falantes de língua portuguesa— e por sua capacidade de barganha.

Ora, um sebo não é ambiente para amadores. O leitor desavisado entra em uma loja de livros usados e paga uma nota por uma edição de paradidático. Age cheio de pudores, como se estivesse frequentando livraria de shopping center: retira da bolsa uma lista de pedidos, recebe a mercadoria das mãos do vendedor, efetua o pagamento e se despede, jurando nunca mais voltar àquele ambiente de expertos, onde livros caindo aos pedaços são vendidos a preço de ouro.

Mas o rato de sebo age como se estivesse em casa. Ao atravessar a porta da loja, respira fundo para sentir o cheiro dos livros, como quem aguarda ansioso pelo jantar. Cumprimenta o livreiro e procura saber das novas aquisições e das suas origens. Toma conhecimento da bancarrota de famílias antigas e de gente morta cujos herdeiros se desfizeram dos livros —sem de nada cobrar um centavo—, ignorantes do tesouro que lhes fora legado. Como quem não quer nada, o camundongo confere os títulos e autores e desaparece entre as suas estantes prediletas, ou mete-se nas caixas de volumes recém-chegados.

Revivendo a excitação do filósofo Walter Benjamin ao confessar que: “O maior fascínio do colecionador é encerrar cada peça num círculo mágico onde ela se fixa quando por ela passa a última excitação —a excitação da compra. Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho dos seus pertences. A época, a região, a arte, o dono anterior —para o colecionador todos esses detalhes se somam para formar uma enciclopédia mágica, cuja quintessência é o destino de seu objeto”.

Nos últimos meses, devido à crise do nosso mercado editorial, muito se fala em presentear parentes e amigos com um livro por ocasião do Natal. Na internet, celebridades participam de desafios, sugerindo leituras e visitando livrarias pelo país afora, a suplicar dos seus seguidores que mudem os seus hábitos de consumo.

Eu mesma —embora insignificante perto de tanta gente ilustre— aderi às hashtags “dê livros de presente” e “leia mais.” Além de publicar no Twitter uma lista com as minhas leituras prediletas de 2018; dentre elas: "A Marca Humana", de Philip Roth, morto em maio deste ano; assim como "Amada", de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1993, e "Filhas do Segundo Sexo", do nosso saudoso Paulo Francis.

No entanto, pergunto-me se para superarmos essa crise basta convocarmos o público às compras. Afinal, o nosso relacionamento com os livros é tanto mercadológico quanto afetivo. Daí a importância de frequentar sebos, bibliotecas públicas e pequenas livrarias especializadas; onde o hábito de leitura se constrói por meio da convivência entre amantes de um mesmo objeto que se renova ao passar de mão em mão e acaba por transformar todos em agentes de uma mesma história: como na feliz celebração dos livros sagrados em dia de Simchat Torah.

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