Mary Poppins borra as fronteiras entre o fantástico e o prosaico

Personagem volta aos cinemas em "O Retorno de Mary Poppins", que estreia no dia 20

Sandra Guardini Vasconcelos

[RESUMO] Como a babá mágica criada por P.L. Travers, que retorna em novo filme neste mês, borra as fronteiras entre o fantástico e o prosaico e dá às crianças acesso a outros planos da existência. 

 

"O que é de verdade e o que não é?", pergunta o Sol em um dos capítulos mais encantadores de "A Volta de Mary Poppins", ao final de um espetáculo circense no qual cometas, constelações e planetas fazem acrobacias e dançam em um picadeiro salpicado de poeira estelar.

"Pensar em uma coisa é torná-la verdadeira", completa ele, como a dar uma pista sobre o que P.L. Travers buscava transmitir a seus leitores: "Há mundos para além de mundos, e tempos para além de tempos, todos eles verdadeiros, todos eles reais, e todos interpenetráveis, como sabem as crianças". 

O elemento de ligação entre a realidade prosaica e aquele mundo mágico da fantasia é uma babá de cabelos negros, olhos azuis brilhantes e nariz arrebitado, como o de uma boneca holandesa.

De volta ao número 17 de Cherry Tree Lane, descendo de uma nuvem pela ponta do barbante de uma pipa, Mary Poppins vem restabelecer a ordem na casa da família Banks ao mesmo tempo em que vem restituir às crianças a possibilidade da aventura, do sonho e da descoberta. 

Como sugere seu sobrenome, ela surge inesperadamente ("pop in": aparecer, dar uma passada; "pop": rebentar, estourar) e desaparece sem aviso ou explicação, desafiando a gravidade (no seu duplo sentido de lei da física e de sisudez) para dar às crianças acesso a outros planos da existência. Sua magia vem, mais uma vez, preencher o vácuo deixado por pais distantes e indiferentes às necessidades de seus filhos. 

Preceptora de verdades que transcendem a estreiteza e o egoísmo adultos, Mary, no entanto, não encarna a figura bondosa tradicional dos contos de fadas. 

No seu duplo papel de babá e governanta, enquanto apresenta um mundo completamente novo para as crianças, não descura de sua função de agente socializador e, como tal, repressivo, que estabelece limites, exige compostura e se recusa a esclarecer, responder perguntas. 

Nada sabemos sobre essa mulher pequena, de rosto severo, olhar penetrante, voz gélida e ameaçadora, algo rabugenta e altiva, que não admite ser contrariada, que tem o céu como elemento e cujos interlocutores são os pássaros, compreendidos por Travers como a culminação do desenvolvimento espiritual. 

Como explica o Estorninho, no primeiro da sequência de oito livros que ela protagoniza, Mary é a "Grande Exceção", um ser humano especial que consegue transcender os limites impostos à natureza humana. Ela detém e conserva a capacidade de comunicação com todos os seres vivos, assim como com as estrelas, atributo que os bebês gêmeos John e Barbara e depois a recém-nascida Annabel partilham, que é falar a linguagem dos pássaros, mas —como adverte o Estorninho— apenas até seu primeiro aniversário. 

Travers insinua, desse modo, que os humanos nascem com uma sabedoria natural e comungam com o universo, mas perdem essa faculdade, que se apaga à medida que eles adquirem experiência e conhecimento objetivo. Não Mary Poppins, que borra e elide as fronteiras entre o fantástico e o prosaico: "Ela é a vida cotidiana, que se compõe do concreto e do mágico" (P.L. Travers).

Apesar da postura empertigada e rígida —bem de acordo com o estereótipo das babás inglesas da era vitoriana--, Mary ensina às crianças a relevância dos sonhos e da imaginação, proporcionando-lhes a experiência de mundos paralelos e suas múltiplas possibilidades.

O sonho é um canal para outra vida, um estado liminar graças ao qual elas podem viver o extraordinário e aprendem que "Pássaro e fera e pedra e estrela, somos todos um só, um só", uma lição sobre a unidade essencial de todos os seres, não importa se animados ou inanimados. 

Com uma correspondência quase simétrica entre os capítulos de "Mary Poppins" e "A Volta de Mary Poppins", ambos os livros se estruturam de forma igualmente semelhante: a realidade cotidiana e prosaica emoldura em cada capítulo uma aventura no mundo da fantasia, sempre deflagrada por um chamariz —uma espécie de isca jogada pela babá e imediatamente abocanhada pelas crianças mais velhas, Michael e Jane: a necessidade de reparar uma peça de porcelana de família propicia a visita ao sr. Turvy, no capítulo apropriadamente intitulado "De Pernas para o Ar", em que todos experimentam um novo ponto de vista ao passar a ver o mundo de ponta-cabeça só porque se trata da segunda segunda-feira do mês; a história do Rei do Castelo e do Patife, cujos guizos do chapéu voltam a tilintar quando o criado dos Banks, Robertson Ay, se mexe durante o sono; na noite de folga, a estrela cadente que guia Michael e Jane pelo céu estrelado até a tenda azul-escuro onde eles assistirão ao incrível espetáculo protagonizado por constelações como Órion, Taurus, Ursa Maior e Menor e encontrarão a babá, que ocupa o camarote e é saudada por todos e cortejada por ninguém menos do que o Sol, que a convida para dançar; os balões, da mulher dos balões, que passam a voar puxando pela ponta do barbante velhos e crianças, homens e mulheres, pobres e ricos, fazendo com que todos, indistintamente, saiam a dar saltos pelos ares; a casa misteriosa que se parece com a Arca de Noé e é ocupada por Nellie-Rubina e pelo Tio Dodger, que pintam pássaros, flores, nuvens recortados na madeira e os distribuem pelo parque, trazendo de volta a primavera e enchendo-o de vida e cores.

A cada aventura, em resposta à curiosidade das crianças, que a crivam de perguntas, Mary reassume seu ar severo e as repreende, às vezes apenas com o olhar, recusando-se a fornecer qualquer explicação. Via de regra, reage indignada quando cobrada a respeito de acontecimentos mágicos e misteriosos. 

Como explicar qualquer coisa, se "cada um de nós tem sua própria Terra de Fadas"? No entanto, pequenos vestígios de todas essas aventuras insondáveis, os quais não passam despercebidos por Michael e Jane na volta para casa, parecem confirmar aquilo que Mary prefere, ou insiste em, negar ou simplesmente deixar no ar: a pequena marca do beijo do Sol na bochecha da babá; as conversações —doces escolhidos e retirados do pote de Nellie-Rubina Noé; os objetos de madeira pintada que ganham vida no parque.

Mary Poppins é a guia nessas escapadas simbólicas da realidade, as quais transformam o extraordinário em norma e subvertem a ordem estabelecida, embora de modo dissimulado.

Levando Michael e Jane (e às vezes também os mais novos) para espaços livres das categorias racionais que regem a vida cotidiana, e nisso semelhantes à Terra do Nunca de Peter Pan e ao País das Maravilhas de Alice, a babá é um instrumento na educação das crianças para as "verdades difíceis" (P.L. Travers) contidas nos contos de fadas, nos mitos e nas canções de ninar, cujo efeito de "despertar" é referido por Travers em um artigo ("The fairy tale as teacher", o conto de fadas como professor). 

A fantasia é sempre temporária, instável tanto em termos de seu sentido quanto de sua duração. Em sua indeterminação, ela sugere que a realidade é inadequada, mas não oferece reconciliação. 

Durante todo o período do retorno de Mary Poppins à casa dos Banks, as crianças sabem, por experiência, que a permanência dela é provisória e temem a chegada do dia de sua partida. Mas também sabem, por experiência, que ela sempre poderá regressar. Da primeira vez, despedindo-se com um "au revoir", a promessa de um retorno estava implícita. Desta vez, ao pedir um bilhete de ida e volta ao coletor de bilhetes do carrossel, Mary deixa novamente no ar a sugestão de que não se vai para sempre.

Quando ela parte, as crianças sabem que partem com ela a magia e o sonho, daí seu sentimento de perda. A renúncia à fantasia não é escolha de Michael e Jane, mas do mundo adulto, encarnado em Mary.

Quando a narrativa se encerra —com a babá sendo levada pelo carrossel em giros cada vez mais rápidos céu afora--, a realidade volta a se impor como única alternativa. Entretanto, o retorno à "normalidade" não resolve o conflito entre realismo e fantasia, pois esta última nem cumpriu a finalidade de socialização, nem possibilitou sua rejeição. 

Ao contrário, para citar Sarah Gilead, o retorno ao real se reveste de uma "trágica ambiguidade" e é impregnado de um sentimento de perda. Sem reconciliação, tendo às mãos apenas o retrato da babá ou seu medalhão, resta às crianças a espera.


Sandra Guardini Vasconcelos é professora titular de literatura inglesa e comparada da Universidade de São Paulo.

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