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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Hannah Arendt aponta que sabedoria vem da falta de prudência na juventude

Para a filósofa, viver a partir de enredo preconcebido significa desistir de nos tornarmos quem podemos ser

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Em ensaio sobre Isak Dinesen —pseudônimo de Karen Blixen, autora de "A Fazenda Africana" (1937)—, Hannah Arendt propõe o seguinte questionamento: "Se é verdade, como sugere [Dinesen], que ninguém tem uma vida digna de ser pensada sem que se possa contar sua história de vida, não se segue então que a vida poderia e até deveria ser vivida como uma história e que o que se tem a fazer na vida é tornar a história verdadeira?".

Com isso, Arendt chama a atenção do leitor para a diferença entre se contar uma história sobre eventos relacionados à própria vida e se tentar viver conforme um determinado enredo, como se a vida pudesse ser tratada tal qual a expressão de um ideal.

Hannah Arendt em 1944 - Picture Alliance

Arendt comenta que, durante a juventude, Dinesen teria procurado viver conforme o legado paterno, como se o sentido da sua vida fosse pura e simplesmente o de continuar a história do seu pai, morto quando a autora ainda era criança: "A história que planejara executar em sua vida pretendia realmente ser a sequência da história de seu pai. Esta envolvera ‘une princesse de conte de fées que todos adoravam’, a qual ele conhecera e amara antes de seu casamento, e que morreu subitamente aos 20 anos de idade [...]. A jovem, revelou-se, era uma prima de seu pai, e a maior ambição da filha passou a ser pertencer a esse lado da família paterna [...]. O que então se seguiu foi mesquinho e sórdido, de forma alguma um material que se poderia pôr tranquilamente numa história ou relatá-lo como tal".

Dinesen apaixonou-se por um sobrinho da antiga paixão do seu pai e, como os seus sentimentos não foram correspondidos, acabou se casando com o irmão gêmeo do rapaz. Ela e o marido mudaram-se para o Quênia, mas o relacionamento entre eles não deu certo.

Para Arendt, a lição que Dinesen teria aprendido com esse episódio seria que, "embora se possam contar histórias ou escrever poemas sobre a vida, não se pode tornar a vida poética, vivendo-a como se fosse uma obra de arte (como fez Goethe) ou utilizando-a para a realização de uma 'ideia'. A vida pode conter a 'essência' (o que mais poderia?); a coleta, a repetição na imaginação, podem decifrar a essência e oferecer-lhe o 'elixir'; e finalmente até se pode ser um privilegiado capaz de 'fazer' algo com isso, 'compor a história'. Mas a vida em si não é essência nem elixir e, se se a trata como tal, ela só pregará peças".

Tenho pensado bastante sobre isso em relação a um dos meus livros prediletos, "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe.

Antes mesmo de haver lidado profissionalmente com o mundo da arte, o jovem Meister acreditava que a sua vocação estaria no teatro. Ao longo do romance, o personagem tenta adequar a sua trajetória a esse ideal, mas a vida acaba se mostrando muito mais imprevisível do que ele poderia supor e, pouco a pouco, Wilhelm passa a refletir sobre as fantasias que costumava nutrir antes de dar início ao seu périplo de aprendizagem.

No romance, nada sai exatamente conforme inicialmente planejado pelo protagonista e se, no fim das contas, as coisas terminam bem para Wilhelm, talvez isso se deva menos às suas intenções do que às circunstâncias. Não é à toa que, no diálogo que encerra o romance, um dos personagens comenta, fazendo uma referência à Bíblia: "Eram bons aqueles tempos, e tenho mesmo de rir ao olhar para ti: tu me lembras Saul, o filho de Kis que foi à procura dos jumentos de seu pai e encontrou um reino".

Ao tentarmos viver unicamente segundo um enredo ou ao acharmos que, para nos realizarmos enquanto indivíduos, devemos seguir os mesmos passos das pessoas que admiramos, como se as experiências acumuladas por elas fossem justamente as mesmas que deveríamos ter, acabamos desistindo de nos tornarmos quem realmente poderíamos ser.

Afinal, embora sejamos semelhantes aos outros seres humanos, precisamos ter em mente que também somos únicos. Isto é, a maneira como cada uma das nossas ações se relaciona com o que há de imprevisível na vida sempre acaba imprimindo algo de novo no mundo.

Para Arendt, o erro de juventude de Dinesen ensinou a autora que, em vez de tentarmos "tornar uma história verdadeira" ou "interferir na vida segundo um modelo preconcebido", devemos esperar pacientemente que as histórias surjam a partir das nossas experiências.

Arendt ainda comenta que foi o contar histórias que tornou Dinesen sábia, mas que "a sabedoria é uma virtude da velhice e parece vir apenas para os que, quando jovens, não eram nem sábios nem prudentes".

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