Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.
Com o passar dos anos, faróis se apagam
Como outras vítimas do avanço tecnológico, as 'sentinelas do mar' perdem função
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
O recife de Eddystone fica perdido e invisível em algum trecho do canal da Mancha e ao longo dos anos foi responsável por incontáveis naufrágios, como o do navio Constante, no Natal de 1695.
Era tempo de construir um farol por lá; mas a única rocha que aflorava à superfície do mar tinha metade do tamanho de uma quadra de tênis.
Idealizada pelo britânico Henry Winstanley, a obra durou quatro anos, com o material sendo transportado até o recife em viagens de barco a remo, que demoravam 12 horas de ida e volta.
Os trabalhos estavam a meio caminho quando um aventureiro francês (Inglaterra e França estavam em guerra) sequestrou o construtor.
Levado à presença de Luís 14, Winstanley se recusou a trabalhar para o inimigo.
O rei poderia tê-lo executado na hora; foi magnânimo. Mandou-o de volta à Inglaterra, para que continuasse a construção do farol. "Estou lutando contra a Inglaterra, mas não contra a humanidade", disse Luís 14.
Nada mais apropriado a um soberano conhecido pelo apelido de Rei Sol do que se revelar amigo dos faróis.
Mas a construção de Winstanley não durou muito; subestimara-se a força das tempestades e, naquela época, o grosso da estrutura de um farol costumava ser feito de madeira.
Outro farol, no mesmo lugar, foi roído por cupins e terminou incendiado. Cinquenta anos depois, uma torre de pedra se tornou capaz de iluminar o caminho dos veleiros.
Durou um século, até que a erosão do mar comprometeu suas fundações. Em 1882, foi feito um quarto farol, que persiste até hoje.
Outra erosão está em curso, a do progresso tecnológico. Fiz referência, outro dia, à desaparição iminente das chaves —objeto que subsiste inalterado há milênios; os cartões magnéticos também vão sumindo, e em prédios novos você entra em seu apartamento digitando uma senha.
A grande maioria dos faróis vai se mostrando supérflua, graças ao GPS e não sei o que mais.
Acaba de ser publicado na Inglaterra um lindo livro contando a história dos faróis. Reproduzi de "Sentinels of the Sea", de R.G. Grant, o caso de Winstanley e do farol de Eddystone.
O livro de Grant não traz quase nada de fotografias —que podem ser lindíssimas—, mas é cheio de ilustrações detalhando os projetos de engenharia de faróis alemães, ingleses, noruegueses ou franceses construídos ao longo de dois séculos e meio.
O capítulo que se refere às técnicas de iluminação é dos mais fascinantes.
Uma simples fogueira encimava o mítico farol de Alexandria —que, medindo o equivalente a 30 andares decorados com esculturas e frisos, estava entre as sete maravilhas do mundo antigo. Só foi destruído no século 14.
Também utilizavam fogueiras os faróis romanos, dos quais sobrevive até hoje o de La Coruña, na Espanha. Na Idade Média, foram-se todos apagando; só alguns mosteiros os preservaram, assim como as bibliotecas.
Livros e faróis coincidem por acaso, aliás, numa referência feita por Grant a uma família escocesa especializada na sinalização marítima: o pai e os irmãos de Robert Louis Stevenson dedicavam-se a essa atividade.
Vieram as velas de sebo e as lamparinas de óleo de baleia; mais tarde, as de petróleo. O grande progresso surgiu com os espelhos e as lentes parabólicas, destacando-se aí a perfeição minuciosa das facetas de cristal desenhadas por Augustin-Jean Fresnel (1788-1827).
Fresnel não é desconhecido dos iluminadores de teatro: até hoje existe um tipo de refletor que leva o seu nome.
Como os mosteiros medievais e os castelos, diz Grant, os faróis são hoje protegidos por associações em defesa do patrimônio histórico e encontram funções alternativas como centros culturais, lugares para instalações artísticas e locais de meditação.
Um farol no Oregon serve como cemitério vertical, abrigando cinzas dos mortos a uma taxa até que módica, se considerarmos a poesia da coisa toda.
Os mortos, de um lugar igualmente já sem vida, enviam sua luz intermitente a um destinatário anônimo.
Em algum ponto da costa, ou quem sabe em alto-mar, uma pessoa sozinha recebe a comunicação silenciosa, incompreensível, de um sinal que atesta —mentirosamente, agora— a presença humana no meio da noite.
"Estou aqui", diz o farol. "Eu também", diz quem o avista no escuro. Mas não se trata de uma resposta. Não houve diálogo; sabe-se apenas de uma presença, de um testemunho —um apelo, talvez, que se troca entre duas solidões, gratuitamente. Já é o bastante.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters