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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Por quem as panelas batem? Batem por nós

Curar-se da insanidade bolsonarista vai demorar, e está longe de resolver tudo

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Será que a epidemia está passando? Não, é claro, a do coronavírus —essa continua crescendo. Mas, quem sabe, chega ao fim o surto de bolsonarismo que tomou conta do Brasil.

Entre as pessoas que não perderam a sanidade mental em 2018, os sinais são de otimismo.

Negando a gravidade do coronavírus, Bolsonaro e seus gurus caem no descrédito. Numa espécie de contágio, o que dizem sobre aquecimento global, sexualidade, criacionismo e terraplanismo também passa a conhecer o caminho da lata do lixo.

É o que diz, com mais elegância, a colunista Claudia Laitano, da rádio Gaúcha ZH.

O fundamentalismo neoliberal se vê contestado também, diz Julian Rodrigues, no site A Terra É Redonda. Ações decididas de intervenção do Estado na economia e de grande aumento nos gastos públicos começam a ser adotadas em toda parte.

A conjuntura mudou com os panelaços, diz o cientista político André Singer no mesmo site. O primeiro, em 17 de março, “ocorreu em bairros de classe média”, locais, como sabemos, “em que Bolsonaro obteve grande apoio e votação nas eleições”.

Isso não significa que “alguma coisa irá acontecer do dia para a noite ou que vai mudar da água para o vinho”, acautela-se Singer, e tendo a concordar.

Tudo depende das próximas cretinices do governo. Nesse ponto, é possível que os eventos se acelerem. Primeiro, porque é da sua natureza ser cretino; em segundo lugar, porque, no desespero, a cretinice de qualquer pessoa aumenta.

Mas existe também a possibilidade de que as muitas bombas-relógio presentes na sociedade brasileira resolvam explodir ao mesmo tempo.

Não há torcida nenhuma de minha parte: algumas coisas horríveis podem acontecer.

Imagine-se, por exemplo, uma revolta organizada nos presídios, como a que aconteceu no “salve geral” decretado pelo PCC em 2006. A cidade de São Paulo conheceu dias de terror e confinamento dignos do pior coronavírus.

Temo também as medidas de governos estaduais, procurando impor à força o isolamento dos que moram em barracos e cortiços. Casos de violência policial contra velhinhos ou pessoas em trânsito podem resultar em comoção e revolta grave.

Sem emprego nem dinheiro para a maioria, o perigo de saques se intensifica. Numa cultura em que o bangue-bangue é sancionado pelas autoridades, milícias profissionais e amadoras podem contar com ocupação garantida.

Com Bolsonaro se contentando em fazer palhaçadas, gerir uma crise de segurança desse tipo ficaria nas mãos de Sergio Moro, cuja imagem tem chances de se esvaziar de vez.

O que pode fazer um ambiciosinho político, ágil nos despachos de gabinete e nos conluios com o Ministério Público, diante de um desafio real? Não sei se muito.

A massa que votou em Bolsonaro, hoje em boa parte envergonhada, teria nessa hipótese de recorrer ao receituário que sempre quis: as Forças Armadas.

E haverá sempre os que vão dizer que “não é golpe” a decretação de alguma emergência com o general Mourão à frente.

Trata-se, sem dúvida, de alguém tão despreparado quanto Bolsonaro —só que menos impulsivo, menos espalhafatoso no primarismo. Já afirmou que o Brasil sofre com a malandragem dos negros e a preguiça dos índios e preconiza a intervenção armada nos famosos “casos excepcionais”.

Não acredito que se fez o panelaço do dia 17 para defender o Congresso e o Judiciário, ameaçados pela irresponsabilidade presidencial. A manifestação surgiu devido à atitude de Bolsonaro face ao coronavírus.
Quem era antibolsonarista desde sempre ficou feliz, é claro, em poder expressar o seu asco. Mas e a classe média arrependida?

Acho engraçado: milhões de pessoas votaram num candidato que apoia a tortura, que homenageia milicianos, que prefere um filho morto a um filho homossexual, que não estupra a mulher que “não merece”.

Milhões de pessoas ficaram em estado de passividade diante de um ministério de fanáticos, ignorantes, provocadores baratos e tuiteiros debiloides.

Tudo o que foi dito contra homossexuais, vítimas da ditadura, transgêneros, mulheres, repórteres, índios e quilombolas não abalou esses eleitores.

Eis que o presidente usa máscara errado, sai cumprimentando adeptos em plena crise do coronavírus e diz mais algumas besteiras. Ah, isso não!

Foi a gota d’água? Talvez. Mas há outra diferença. A vida de índios, negros, transexuais e jovens da periferia é apenas a vida “dos outros”.

Quando Bolsonaro mostra não ligar para o vírus, é da “nossa vida” que ele está descuidando. É por “nós” que as panelas batem.

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