Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

Como é que os palhaços chegam ao poder

Com Trump e Bolsonaro, a crise de 2008 fez a aliança entre Thomas Wayne e o Coringa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A polícia dos Estados Unidos tomou providências especiais de segurança para a estreia de “Coringa”, filme de Todd Phillips com Joaquin Phoenix no papel principal.

Não era para menos. No auge do filme, encena-se uma revolta popular que, apesar de cega e liderada por um louco, tem muito de plausível. 

Depois da crise financeira de 2008, daquelas máscaras do “V de Vingança” e da onda black bloc, o caos promovido em Gotham City não parece longe de acontecer na vida real.

Com admirável senso de ironia e uso justo da metalinguagem, o roteiro de “Coringa” mostra uma massa de vândalos aterrorizando os cidadãos “pacíficos” de classe alta que saíam de uma sessão de cinema. 
Aquela cena de “Coringa” bem que poderia ser profética. 

Colagem de duas mãos se cumprimentando, uma delas usando um terno vermelho com camisa verde água e a outra com terno preto e camisa branca.
André Stefanini/Folhapress

Mas 2019, ao que tudo indica, não é 2008. Pelo menos nos Estados Unidos o desemprego anda baixíssimo; a derrocada econômica de dez anos atrás não se confirmou, ao menos por enquanto, como a crise final do capitalismo.

Apesar de assumirem uma face mais raivosa com Greta Thunberg, como já comentei há algumas semanas, os protestos ecológicos não possuem a mesma qualidade emocional dos que se registraram com a explosão da bolha imobiliária de 2008.

Falta-lhes uma coisa que sobrava há cerca de dez anos: a sensação amarga da injustiça, a ideia de que 99% da população estava sendo sacrificada em favor dos bilionários de Wall Street.

Na Gotham City de “Coringa”, os crimes do protagonista são vistos pela população como atos de vingança contra os ricaços do mercado financeiro. 

O cenário é de 1970, mas a cabeça dos revoltosos é a de quem já assistiu à falência da Lehman Brothers e à total impunidade dos banqueiros que armaram a grande esparrela de dez anos atrás.

Não há limites para a miséria e o sofrimento mental de Arthur Fleck, que irá se transformar no Coringa ao longo do filme.

Das tremendas injustiças que o perseguem como precário trabalhador de rua aos cortes no sistema de saúde —que lhe retiram o acesso a remédios psiquiátricos—, sua dor é tão convincente quanto a retratada num filme bem mais contido e realista: “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach.

A atuação antológica de Joaquin Phoenix, a música da islandesa Hildur Gudnadottir, o roteiro de Todd Phillips e Scott Silver, a participação de Robert de Niro, tudo merece um Oscar de diamante.

Mas nenhum adjetivo elogioso dá conta da complexidade do filme e das camadas de distância, de opacidade e de metalinguagem que interpõem entre seu grito de desespero e sua realização final.

Sim, há o destino terrível de um pobre coitado como Fleck e dos muitos humilhados que vivem e trabalham nos prédios-favela de Gotham. 

Mas existe também o jogo de referências com Charles Chaplin —o mendigo engraçado (e genial, claro) de quem todos têm compaixão.

Só que os ricos de hoje, como o milionário Wayne de Gotham City, deixaram de acreditar na pureza rousseauista dos pobres.

Ficou chique e inteligente, como se vê diariamente na produção dos ideólogos de direita, se fazer de “malvado”, de “durão”, ostentando machezas de quem conhece “o mundo real”.

Candidato à prefeitura de Gotham, o Thomas Wayne do filme repete esses clichês; é uma espécie de Trump, com ótimas relações com os imbecis da indústria de entretenimento. 

Seria o caso, então, de ver Arthur Fleck como a resposta sanguinária dos pobres contra a alegre macheza de uma direita que já não se preocupa em fingir bons sentimentos? Não —e acho que aí está o mais interessante do filme.

O fato é que os líderes, os pensadores e os patetas que defendem a injustiça social não são simplesmente a tradução fiel de escroques como Thomas Wayne. São também a tradução deturpada do próprio Coringa.

A grande jogada política do pós-2008 foi criar palhaços de um novo tipo, que se orgulham de ser incorretos e impiedosos. 

Trump, Bolsonaro e companhia são “entertainers”, humoristas truculentos e desengonçados, expondo caretas, imbecilidades e tropeços num circo em ruínas. 

A revolta de Arthur Fleck poderia inspirar vandalismo popular e tiroteios em 2008; hoje, a realidade é outra. O Coringa e Thomas Wayne se uniram. 

É uma aliança entre especuladores e “losers”, entre pobres-diabos e milionários, entre bandidos e socialites, entre o Pentágono e a Ku Klux Klan, entre palhaços e golpistas, entre as milícias e os generais. 

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.