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Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Descrição de chapéu yanomami vale do javari

Crise na Terra Indígena Yanomami: saúde, meio ambiente, direitos humanos

Governo precisa não só responder à emergência, mas desfazer estragos dos últimos 4 anos

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Em 1984, foi proposto um modelo para o estudo dos determinantes da sobrevivência de crianças nos primeiros cinco anos de vida. Destaco três pontos importantes do modelo.

Primeiro, sob condições ideais, cerca de 97% das crianças deveriam sobreviver até os cinco anos de idade. A morte durante essa etapa da vida é, em sua maioria, uma consequência do efeito acumulado de fatores adversos que progressivamente deterioram a saúde.

Segundo, há cinco categorias de determinantes próximos que afetam diretamente a sobrevivência. Aqui estão incluídos fatores maternos (como idade da mãe), contaminação ambiental (ar, comida, água, insetos), deficiências nutricionais, acidentes e formas de controle de doenças.

Embarcações carregam galões de combustível até no porto do Arame, no rio Uraricoera, no município de Alta Alegre (RR); local faz parte da logística de abastecimento dos garimpos dentro da Terra Indigena Yanomami - Lalo de Almeida - 7.fev.2023/Folhapress

Terceiro, variáveis socioeconômicas modificam os determinantes próximos e, através deles, afetam a sobrevivência de crianças. Essas variáveis estão relacionadas aos pais, ao domicílio e ao contexto ecológico, político e institucional no qual a criança está inserida.

A crise humanitária na terra Yanomami, a maior do país e localizada em Roraima, exemplifica esse modelo. A crise não é resultado de um evento único, imediato. O quadro severo de desnutrição das crianças, o pior já reportado entre comunidades indígenas nas Américas, não aconteceu da noite para o dia. A crise que ganhou a atenção do Brasil e do mundo em janeiro é reflexo de sucessivas ações de negligência, negação de direitos e mudanças na legislação ambiental.

Ressalto alguns eventos nesse processo cumulativo que contribuíram para a crise e que afetaram os determinantes próximos que mencionei anteriormente.

A partir da década de 80, quando ouro foi descoberto na terra indígena Yanomami, atividades ilegais de garimpo resultaram em epidemias de tuberculose e malária. Além disso, o uso do mercúrio nas atividades de garimpo contamina rios, peixes, plantas e o ar. As consequências são inúmeras e podem ser fatais (leucemia, atraso no desenvolvimento, complicações neurológicas etc.).

Após o desmonte do programa Mais Médicos, mais de 80% dos médicos que prestavam atendimento à população indígena perderam seus empregos e não foram totalmente substituídos. Isso afetou a capacidade de vigilância e controle de doenças.

Durante os últimos quatro anos, mudanças na legislação ambiental favoreceram o desmatamento e a expansão do garimpo ilegal (extração de ouro e cassiterita). A Terra Indígena Yanomami é a terceira em área garimpada, ficando atrás das terras Kayapó e Munduruku, ambas no Pará. Além disso, é a que possui o maior número de pistas de pouso, 75 ao todo, 34% localizadas a menos de 5 km de uma área de garimpo.

A malária nessa área aumentou drasticamente. Em 2021, cerca de 46% dos casos de malária em localidades indígenas foram observados na terra Yanomami. Em Roraima, do total de casos de malária reportados em 2017, 0,1% eram em localidade de garimpo e 22,6% em localidades indígenas. Em 2021 esses percentuais foram 26,4% e 54,9%, respectivamente.

A expansão desenfreada do garimpo também trouxe a violência (homicídios e estupros) e afetou a organização social do povo yanomami devido a cooptação de jovens indígenas para trabalhar no garimpo.

A crise humanitária na Terra Indígena Yanomami é uma tragédia anunciada. Não faltaram estudos, relatos e ofícios de alerta enviados ao Ministério Público Federal, à Funai e ao Exército. Todos vergonhosamente ignorados.

O atual governo não só precisa responder a essa emergência de saúde, humanitária e ambiental, como precisa reverter os estragos dos últimos quatros anos. Tarefa hercúlea de reconstrução, já em curso, fundamental para a sobrevivência da floresta e dos povos indígenas.

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