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Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Por que violência sexual ainda é crime sem devido castigo no país

Caso Klein e de vítimas como Mariana Ferrer mostram como lei do silêncio, poder econômico e machismo levam à impunidade e culpabilização das vítimas

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São Paulo

Faz 21 anos hoje que o 18 de maio se tornou Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Chega assim à maioridade um marco da luta contra a impunidade a partir de um caso emblemático como o de Araceli Cabrera Crespo, garota capixaba de oito anos violentada e morta em 18 de maio de 1973. Os três acusados, membros de influentes famílias do Espírito Santo, foram inocentados em segunda instância.

Passados 48 anos do crime que chocou o país, vem a público o caso Samuel Klein, a partir de reportagens da Agência Pública e da Folha, nas quais dezenas de mulheres relatam ter sido molestadas sexualmente na infância pelo fundador das Casas Bahia.

O rei de varejo morreu em 2014, aos 91 anos, sem prestar contas à Justiça, reacendendo o debate em torno da impunidade de crimes dessa natureza no país.

Inquéritos arquivados sem indicar os responsável se somam a um sistema judiciário e a uma sociedade que, em muitos casos, ainda culpabilizam as vítimas, como ficou evidente com a divulgação de vídeo de uma audiência no curso do processo de estupro movido pela influenciadora digital Mariana Ferrer.

Ela é desacreditada e humilhada em juízo, após ter sido dopada e violentada, de acordo com provas testemunhais e períciais, pelo empresário André de Camargo Aranha, filho de uma família tradicional de Santa Catarina. O episódio ocorreu numa festa em um famoso clube de praia em Florianópolis.

O advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa e Silva, usou imagens sensuais da ex-modelo, que tem 2,7 milhões de seguidores no Instagram, para reforçar a argumentação de que o sexo teria sido consensual. Além de declarar que as poses eram "ginecológicas", disse que jamais teria uma filha do nível de Mariana.

A virulência fez a jovem cair no choro diante do juiz Rudson Marcos, da 3a Vara Criminal de Florianópolis. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, indagou a vítima.

A tese da defesa de que não era possível comprovar se o acusado sabia que a vítima não tinha capacidade de consentir a relação sexual levou à absolvição do réu.

Os casos Araceli, Klein e Mariana Ferrer demonstram o quão assimétricas são as batalhas judiciais contra poderosos acusados de crimes sexuais.

“A impunidade impera diante de poder econômico, o respaldo de advogados e um discurso de defesa que faz sentido para o judiciário”, afirma a psicóloga Iolete Ribeiro, ex-presidente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). “Já quem sofre a violência não tem os mesmos recursos, além de enfrentar machismo e questões de gênero que tornam invisíveis os diretos de meninas e mulheres.”

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ocorrem 180 estupros diários no Brasil, um a cada oito minutos, e 59,7% das vítimas têm no máximo 13 anos.

A subnotificação ainda é regra. Estima-se que apenas 10% dos casos são notificados, cenário no qual emerge o #MeTooBrasil. O movimento inspira-se no congênere norte-americano encabeçado por mulheres da indústria do entretenimento que protagonizaram uma onda de denúncias de assédio sexual e estupros por parte de figurões de Hollywood.

Ganham força também campanhas como Não se Cale, com hashtags e presença forte nas redes sociais, para encorajar vítimas, somar vozes e derrubar a lei do silêncio que vigora em infrações sexuais. Além do trauma, as vítimas precisam vencer a vergonha, o constrangimento e as intimidações até fazer a denúncia.

“O viés cultural machista da nossa sociedade impõe à vítima o silêncio, para que não sofra julgamento moral, e quando ela decide acusar o abusador sofrerá, quase sempre, ataques que vão colocar em suspeição a sua palavra, muitas vezes culpabilizando-a pelo crime”, constata Fernando Castello Branco, professor de processo criminal da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Numa inversão de valores e papéis, a vítima passa a ser vilã, enquanto o abusador tenta se vitimizar perante a opinião pública e a Justiça.

Cultura que fez prevalecer por anos nos tribunais Brasil afora a tese da “legítima defesa da honra”, sustentada pelo criminalista Evandro Lins e Silva no julgamento do homicídio de Ângela Diniz por Doca Street, em 1976. Condenado a uma pena de dois anos de prisão em um primeiro julgamento, o réu saiu aplaudido do tribunal.

A reação dos movimentos feministas, com passeatas e palavras de ordem como “Quem Ama, Não Mata”, fez com que em novo julgamento Street fosse condenado a 15 anos de reclusão por homicídio doloso qualificado.

O avanço na legislação nas últimas décadas nem sempre encontra eco em sentenças que livram estupradores e abusadores com a justificativa de que “meninas de 12 anos já têm corpo de mulher”, ou “a garota de 14 anos não era mais virgem”.

Uma decisão judicial rumorosa nessa linha absolveu o ex-atleta Zequinha Barbosa da acusação de exploração sexual de adolescentes em 2003. Os desembargadores do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul entenderam que "as três meninas, com 13, 14 e 15 anos na época dos fatos, em junho de 2003, já tinham se prostituído antes".

O caso foi novamente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em junho de 2009, que manteve a decisão do TJ-MS. Resultado que mereceu duras críticas da Associação Brasileira de Magistrados, de promotores e defensores públicos da área da infância e juventude e do Unicef.

“Existe um choque entre uma visão conservadora e machista de operadores do Direito e uma legislação contemporânea e progressista que vem se consolidando nas últimas décadas”, constata Eduardo Querubim, promotor de Justiça de Barueri.

Ele cita o contraste de uma decisão no Piauí em 2015, quando um acusado de estupro presumível de menor de 14 anos foi absolvido, com o argumento "estarrecedor" de que a garota dera seu consentimento. E no caminho oposto, exemplifica o julgamento de 24 de março da terceira turma do STJ que, por maioria, definiu que não ser necessário haver intermediação para caracterizar um crime de exploração sexual de crianças e adolescentes.

"Os tribunais superiores vão nesta linha progressista", conclui o promotor, que acompanha a investigação das denúncias de aliciamento e estupro por parte de mais de 30 jovens contra Saul Klein, filho caçula do fundador das Casas Bahia.

O inquérito é conduzido pela Delegacia da Mulher de Barueri, sob sigilo, manto legal para proteção das vítimas.

Segredo de Justiça que também esconde um histórico de impunidade. “São dois direitos em conflito, o de publicidade e o de preservação da honra e da imagem da vítima”, afirma Iberê Dias, juiz da Vara da Infância de Guarulhos. “A proteção acaba se sobrepondo.”

É uma garantia para tornar menos penosa a denúncia de crimes como estupro, abuso sexual e violência doméstica. “Nossa sociedade é eminentemente conservadora, retrógrada e machista. Isso se reflete desde a apuração dos crimes até as sentenças, permeando todas as atividades do sistema de Justiça no qual estamos inseridos”, constata o juiz.

Para o magistrado, outro reflexo está na dificuldade de levar educação sexual para crianças e adolescentes, fundamental para prevenir abuso e exploração. “Os abusadores sexuais são os maiores beneficiários quando se deixa de falar adequadamente de sexo nas escolas”, critica Dias.

Uma evolução legislativa foi a aprovação em 2017 da Lei da Escuta Protegida, que garante a meninos e meninas um depoimento em ambiente acolhedor. Na presença de psicólogos e em salas lúdicas, a vítima é ouvida uma única vez e a gravação passa a ser usada nas demais fases do inquérito e do processo judicial.

Até o momento são poucos os centros integrados de atendimento a vítimas com tais cuidados, com menos de dez unidades em funcionamento em capitais como Brasília, Porto Alegre, Belém e Rio de Janeiro.

A realidade no país é a peregrinação por diferentes serviços e a repetição do relato de violência para o delegado, o médico, o promotor, o juiz. A cada depoimento, o trauma é revivido.

“Precisamos criar espaço de confiança para as denúncias”, afirma Estela Scandola, pesquisadora da Escola de Saúde de Pública de Mato Grosso do Sul, autora de estudos de referência sobre exploração e tráfico de pessoas no Brasil.

Ela se indaga como um caso de exploração sexual continuada de meninas por parte de um homem rico e poderoso como Samuel Klein passou ao largo de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), conduzidas pelo Congresso Nacional, e também de encontros nacionais sobre exploração sexual no país.

“Fui a todos os eventos da rede de proteção nas últimas décadas e acompanhei de perto o trabalho das CPIs e nunca tinha ouvido falar de denúncias contra o dono das Casas Bahia.”

Encerrada em junho de 2014, a última CPI conclui em seu relatório que a impunidade e o desinteresse por parte das autoridades são grandes problemas detectados ao longo da investigação, que culminou com mais de uma centena de indiciamentos.

“Mais grave ainda é o envolvimento de policiais, políticos, juízes como clientes ou até mesmo participando diretamente do aliciamento de jovens para a exploração sexual”, diz o relatório. “O sistema judiciário também tem sua parcela de culpa, na medida em que juízes interpretam de forma branda a legislação em casos envolvendo estupro de vulnerável e exploração sexual de adolescentes.”​

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