Siga a folha

Jornalista, comenta na Globo e é cofundadora do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte.

Descrição de chapéu Campeonato Brasileiro

Medo pode afastar e transformar relação do torcedor com futebol brasileiro

Uma criança vai querer ver um Liverpool x City ou um Ceará x Cuiabá que termina com invasão?

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Lembro quando pela primeira vez ouvi de um colega na redação: "Meu time é o Real Madrid". Tudo bem, mas qual é o seu time de verdade? "Real Madrid." Você não torce para nenhum time brasileiro? "Não."

Entre perplexidade e desdém, segui para o meu computador sem entender. Uma pessoa apaixonada por esportes a ponto de trabalhar com isso e que simplesmente tinha "escolhido" torcer pelo Real Madrid, um time distante, que provavelmente esse cara nunca tinha sequer visto jogar no estádio. E seria possível torcer assim, de verdade, sem a experiência da arquibancada?

A escolha por um time nunca é exclusivamente individual, ela é um pouco coletiva também. Porque fazem parte o contexto onde se vive, as influências que se têm em casa, na escola, na cidade. Da minha parte, escolhi torcer pelo mesmo time que meu pai e lembro até hoje minha primeira experiência no estádio e tudo o que ela me despertou.

Talvez crianças prefiram ficar em casa e ver o Real - Susana Vera - 16.out.22/Reuters

Só que meu pai não levava a gente com frequência aos jogos –e ele tinha motivos para isso. Tinha medo. Escolhia a dedo o jogo que "dava para ir" e fazia todo o planejamento para chegarmos cedo e ficarmos longe de qualquer confusão. O medo era da violência, das brigas de torcida, dos confrontos com a polícia e de se ver sozinho tendo que correr com duas crianças para protegê-las do palco de guerra que às vezes se estabelece nos estádios.

Quando fui pela primeira vez sozinha em um clássico, já na juventude, eu só contei a ele depois, para não preocupá-lo. E o pior é que teve o corre-corre que ele tanto temia na saída desse jogo. Eu e uma amiga tivemos que nos proteger em um posto de gasolina depois de correr muito em meio a bombas de gás.

Aí eu vejo as cenas do último domingo no Castelão, na Ilha do Retiro e nos arredores da Arena da Baixada, e entendo quanto meu pai tinha razão. Entendo também o "torcedor do Real Madrid" que não tem time no Brasil. Aliás, as crianças que torcem para times europeus têm se multiplicado. Claro que não é só um fator que explica isso, mas o futebol brasileiro tem feito muito para se afastar do seu torcedor.

Crianças passando mal e sendo carregadas pelos seguranças. Invasão de campo de torcida para intimidar jogador. Bombeiros sendo agredidos de maneira covarde –entre eles, uma mulher caída que foi chutada sem piedade.

Futebol é conexão. E fica difícil conectar-se com um jogo que termina em pancadaria, ameaças, violência. Uma criança hoje vai gostar mais de ver um Liverpool x Manchester City, com goleiro brasileiro dando assistência para o belo gol de Salah, um Real Madrid x Barcelona com atacante brasileiro fazendo gol no Bernabéu, ou um Ceará x Cuiabá que termina com invasão de campo e ameaça a jogadores?

Que tipo de coisa estamos ensinando aos pequenos quando atribuímos o caos que se viu na Ilha do Retiro à comemoração de um gol? Qual conexão queremos que uma criança tenha com o futebol quando a torcida adversária é proibida de entrar em um clássico para evitar brigas –e as cenas de violência acontecem mesmo assim?

Ilha do Retiro foi um dos palcos de confusão - Alexandre Lago - 16.out.22/Ag. O Globo

Não há notas de repúdio, perdas de mando de campo ou determinação por torcida única que resolvam um problema tão grave como esse. As imagens registraram cada torcedor que invadiu, agrediu ou intimidou jogadores nesses três episódios, que, infelizmente, estão longe de ser isolados. A responsabilização e punição deles é o mínimo necessário para combater essa violência inaceitável.

Os traumas de quem viveu essas tragédias eu não sei se vão se curar. Talvez as crianças que estavam ali e suas famílias prefiram ficar em casa torcendo pelo Real Madrid em vez de voltar a uma arquibancada de onde não conseguem saber se vão sair vivos e ilesos.

Tive sorte que o medo levou meu pai a fazer ponderações, mas não a desistir de me levar para o estádio. Talvez hoje, diante desse contexto, a decisão dele seria outra.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas