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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

O esporte brasileiro do racismo

Piquet dá de cara no muro ao se referir a Hamilton como neguinho

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Voltou à tona esta semana, como bomba de efeito retardado, o vídeo de uma entrevista do ano passado em que Nelson Piquet se refere ao inglês Lewis Hamilton como "o neguinho".

Isso mesmo, só "o neguinho", sem sequer citar o nome do heptacampeão mundial de Fórmula 1. E agora o detonador funcionou: o racismo flagrante do ex-piloto brasileiro mereceu condenação pesada em todo o mundo.

Apesar dos preocupantes retrocessos obtidos pela direita radical planeta afora, é um alento perceber que a maior parte da opinião pública não é mais aquela do século passado, tolerante com o que não pode ser tolerado.

O piloto britânico Lewis Hamilton (de chapéu e óculos) à frente do francês Jean Alesi e do brasileiro Nelson Piquet, que estão abraçados, no enterro do austríaco Nick Lauda, em Viena (SUI) - Joe Klamar - 29.mai.19/AFP

Também houve quem tentasse defender Piquet alegando que "neguinho" é um termo de tratamento carinhoso ("que saudade sua, neguinho") e um substantivo informal que significa pessoa ou grupo de pessoas indeterminadas ("neguinho pira"). Sobre isso convém refletir um pouco.

É verdade que seria incorreto considerar neguinho um termo racista em si, no vácuo. Se o sentido depende sempre do contexto, a operação se torna mais delicada no caso de um termo multifacetado que espelha a complexidade das relações raciais brasileiras.

"Neguinho" pode ser carinhoso, sim. Mesmo quando tem conotações positivas, costuma carregar uma aura de paternalismo. Nos últimos anos, setores do movimento negro têm trabalhado para criminalizar a palavra em todas as suas acepções, terraplenando ambiguidades.

De todo modo, fica evidente que a defesa da inocência de neguinho não funciona no caso de Piquet, apoiador dedicado —a ponto de virar seu chofer— de um presidente que pesa quilombolas em "arrobas".

Pode até ser agravante: ali está, nu em pelo, o racismo casual que no Brasil é uma espécie de jogo de salão, covarde até para se assumir como tal.

Lewis Hamilton é uma lenda viva, o maior vencedor da história da F-1 ao lado do alemão Michael Schumacher, sobre quem leva a vantagem de continuar competindo. Diminuir seus feitos é impossível. Se nem ele está a salvo do racismo sonso à brasileira, ninguém está.

Embora "nigger", termo bem mais pesado, não seja uma tradução perfeita do ambíguo neguinho, a imprensa estrangeira de língua inglesa acertou ao interpretar assim a declaração de Piquet. Ofensa racial é ofensa racial.

A superioridade esportiva indiscutível de Hamilton apenas acrescenta à atitude do brasileiro tricampeão um componente de ressentimento e despeito, misturado a uma motivação familiar —a filha de Piquet é namorada do holandês Max Verstappen, atual campeão e grande rival de Hamilton.

Nada disso surpreende quem conhece a história do ex-piloto brasileiro. Em 1988, Piquet jogou no ventilador acusações homofóbicas contra Ayrton Senna, que o fazia comer poeira tanto em brilho quanto em popularidade.

Nos debates deflagrados em 1973 pela decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Roe v. Wade, revogada agora na onda de fundamentalismo cristão que afoga o país, quem se opunha ao direito de abortar começou a ser chamado de "anti-choice" (antiescolha).

Era um nome negativo. "Pro-life" (pró-vida) —que passou a ser usado com esse sentido em 1976, segundo o estudioso das palavras William Safire— inverteu o jogo.

É uma palavra profundamente hipócrita, abraçada por quem costuma apoiar a pena de morte e o acesso irrestrito às armas de fogo, e mesmo assim colou. Um caso fascinante de uso político da linguagem.

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