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Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Deboche do direito internacional

Boris Johnson mina confiança internacional no Reino Unido com decisão sobre brexit

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Que não há precedentes para o brexit, sabe-se há tempo. A decisão pela saída do Reino Unido da União Europeia também gerou uma quantidade de situações inéditas e problemas sobre os quais ninguém havia pensado.

Agora, há algo tão inusitado quanto lamentável: o deboche do direito internacional. É verdade que, com frequência, países ignoram compromissos internacionais ou, mais comum, alegam cumpri-los quando não é o caso. O que se vê desta vez é diferente.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, durante um debate no parlamento sobre lei que invalida partes do acordo do Brexit - Jessica Taylor - 14.set.2020/Parlamento do Reino Unido via Reuters

Boris Johnson tornou-se primeiro-ministro na base de que ele, sim, conseguiria consumar o brexit. Prometeu que conseguiria fazer com os europeus um acordo que seu próprio Parlamento pudesse aceitar, depois que o pacto negociado por sua antecessora fora rejeitado por três vezes.

Pois Boris Johnson fechou novo acordo com a UE, que aliás não é muito diferente do de Theresa May. E o Parlamento britânico aprovou o entendimento apresentado, dessa vez, pelo líder do Partido Conservador. Júbilo para o primeiro-ministro, que não economizou elogios ao seu feito. Em 31 de janeiro deste ano, devidamente ratificado pelas duas partes, o acordo entrou em vigor.

Para espanto geral, no início deste mês, o governo de Boris Johnson apresentou ao Parlamento britânico projeto de lei que viola os termos do seu acordo. Um de seus ministros abertamente assumiu que se trata de desconsiderar o pactuado, um tratado internacional concluído muito recentemente e pelas mesmas autoridades que agora o sabotam.

Debochar do direito internacional não parece boa coisa para quem precisa construir reputação de parceiro confiável. Para quem tem o enorme desafio de negociar acordos às pressas para assegurar mercado para seus produtos e serviços. Para quem se orgulha de sua tradição jurídica. Para quem tem ambições de se reposicionar no mundo como Global Britain no pós-brexit.

Claro, isso tudo pode ser apenas tática negociadora de Boris Johnson. Pode ser que lhe pareça uma grande ideia colocar pressão nos europeus dessa forma. Pode ser também que ele não imaginasse ser tão espinhosa a discussão sobre o relacionamento com a UE no pós-brexit. Cantou vitória antes da hora com o acordo no início do ano, que sabidamente deixava o mais complicado para depois.

Boris Johnson parece se dar conta de que o grande acordo que fechou não lhe convém no caso do chamado “no-deal brexit”, uma possibilidade cada vez mais concreta. O primeiro-ministro agora dobra a aposta e lança os dados.

Independentemente dos porquês, o movimento de Boris Johnson é lamentável. Semeia confusão. Não apenas lança dúvidas sobre quão confiável é seu próprio governo, mas acaba por encorajar outros países a flertar com a ideia de descumprir acordos internacionais e, assim, de maneira deslavada.

Há poucas semanas, os britânicos estavam dando lição de moral na China, alegando descumprimento do acordo, assinado em 1984, a respeito da devolução de Hong Kong para os chineses. Estufavam o peito para falar de compromissos internacionais, de estado de direito. Com os desdobramentos mais recentes do brexit, a imprensa chinesa não perdeu tempo em apontar a incoerência dos britânicos.

A insatisfação com compromissos internacionais se resolve com rescisão ou renegociação. Mas talvez fosse muito esperar que Boris Johnson pedisse para os europeus renegociarem seu glorioso acordo ou formalmente decidisse terminar com ele. Mais fácil encarar o direito internacional segundo a conveniência do dia.

O cinismo e o oportunismo nas relações internacionais não são novidade. Que os países desrespeitam compromissos internacionais, tampouco é. Mas o deboche nesse nível faz com o que o brexit inove uma vez mais.​

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