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Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Abordagem racista a motoboy negro é gatilho dos tempos da escravidão

Amparo a agressor branco é versão atualizada do massacre de Tulsa (EUA), há cem anos

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"Para quem está ouvindo falar pela primeira vez sobre os distúrbios raciais de Tulsa, em 1921, pode parecer quase impossível acreditar. Durante o curso de dezoito terríveis horas, mais de mil casas foram totalmente queimadas, praticamente da noite para o dia, bairros inteiros em que famílias tinham criado seus filhos, visitado vizinhos e pendurado suas roupas do lado de fora para secar foram repentinamente reduzidos a cinzas. E enquanto suas casas queimavam, o mesmo ocorria com o que elas continham, incluindo os móveis e as Bíblias das famílias, bonecas de pano e edredons, berços e álbuns de fotos. Em menos de 24 horas, quase todo o distrito residencial afro-americano de Tulsa –cerca de quarenta quarteirões no total– tinha sido destruído, deixando quase 9.000 pessoas desabrigadas."

Este é o trecho inicial do livro "A Nação Precisa Acordar – Meu Testemunho do Massacre Racial de Tulsa em 1921" (Fósforo), relato escrito e publicado pela professora e jornalista afro-americana Mary E. Jones Parrish, sobrevivente, juntamente com sua filha, de um dos episódios mais triste da "guerra racial" da história dos Estados Unidos.

O relato de Mary Parrish tem um antecedente aterrador, que passa pela ideia das narrativas da supremacia racial branca sobre a população negra. Tanto ontem quanto hoje, a amnésia histórica faz parte de uma sociedade que não aprende com seus próprios erros.

Os episódios que antecederam o massacre de Tulsa não são banais. Eis seu resumo, de acordo com o livro. Um jovem negro, Dick Rowland, engraxate de 19 anos, acessa o elevador do edifício Drexel, prédio que leva ao único bandeiro que pode ser usado por negros. Dentro dele, a ascensorista Sarah Page, uma mulher branca, também jovem, que grita diante do rapaz, chamando a atenção sobre ela e o negro.

A primeira versão do caso é de que Rowland pisou no pé de Page, a outra é que ele teria "tentado estuprar" a moça. Ao contrário da polícia ouvir Rowland, o encarcerou e, nesse mesmo dia, o jornal local Tulsa Tribune, passou a noticiar a tal tentativa de estupro, atiçando a fúria de homens brancos, que prometiam linchar o jovem na noite de sua prisão, conforme o editorial do jornal supremacista.

Dick Rowland, não entanto, escapou de ser linchado e sobreviveu. Com o andar do inquérito, foi inocentado - a polícia alegou não encontrado indício de estupro e agressão na moça.

Mas, durante sua prisão e investigação do ocorrido, o mundo veio abaixo no distrito Greenworod, em Tulsa, que fica no estado de Oklahoma, local que jamais superou o trauma –por isso vale a pena ler, por tudo que evoca, "A Nação Precisa Acordar", de Mary Parrish, que transcreve depoimentos da época e traz um elucidativo posfácio escrito pela neta da autora, Anneliese M. Bruner.

O resultado de tudo foi a inteira destruição da "Wall Street Negra" ——também chamada de "Pequena África", próspera e avançada financeira e tecnologicamente, que em menos de 24 horas, teve seus habitantes mortos, residências, colégios, igrejas e casas comerciais destruídos pelas chamas provocadas pela sanha de centenas de homens em fúria.

Incidentes desse tipo, de consequências muitas vezes trágicas, onde apenas a "voz" de pessoas brancas é ouvida, apesar da evidência dos fatos, foram percebidos no último sábado (17), na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, quando o motoboy Everton Henrique da Silva, homem negro, de 40 anos, é agredido a faca, na luz do dia.

O motoboy Everton da Silva é algemado e detido pela Brigada Militar após sofrer uma facada no pescoço; ao fundo, o suspeito, um homem branco sem camisa, sorri em conversa com um policial - @nietzsche4speed no Instagram

Na ação presenciada e gravada por testemunhas, constata-se que a vítima negra, que denuncia a agressão, é algemada pelos policiais da Brigada Militar e colocada no camburão, sob protestos, enquanto seu verdadeiro agressor, um homem branco, identificado como Sérgio Camargo Kupstaitis, de 72 anos, que aparece no vídeo sorridente, é tratado cordialmente pelos agentes.

Tudo isso prova que o corpo negro, seja homem ou mulher, é visto sob o prisma criminal, de desordem e de vadiagem, independentemente da condição social. Estados como o Rio Grande do Sul, com baixa presença de negros (cerca de 18,9% da população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), é corriqueiro em associar esse segmento com servilismo e escravidão –como também ocorre nos Estados Unidos.

O ocorrido com o cidadão Everton Henrique, vítima de tentativa de homicídio e tratado feito "saco de lixo", como denunciou, nos remete ao longínquo acontecimento de Tulsa, quando moradores foram desrespeitados, caçados, perseguidos numa explosão de violência e ódio racial.

Se ato como do Everton não for visto como racismo estrutural, herança da escravidão brasileira, é porque o país e suas instituições ainda estão historicamente adoecidos, e negligenciam as leis, sob a certeza da impunidade e privilégios da branquitude, como se o dia 13 de maio de 1888 (data conhecida como Lei Áurea) tivesse acontecido.

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