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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Os casais e as questões de gênero

Não há previsão de que a equanimidade seja alcançada pela geração atual

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Desde que o homem se pôs no centro do universo, sobrou para a mulher o escanteio, que desembocou na tensão permanente entre os gêneros. O lugar da mulher oscila entre o ideal —cantado em verso e prosa— e o objeto passível de ser trocado, usado e destruído. Jogo bem conhecido das relações abusivas, nas quais excesso de gentilezas e sedução se alternam com a violência física, psíquica, patrimonial...

Quem sonha com um tempo no qual os casais viviam felizes e satisfeitos com suas diferenças sofre de amnésia seletiva. Para refrescá-la basta rever o inventário quase completo dos descalabros de gênero feito por Margaret Atwood no livro "O Conto da Aia" (1985). Não há cena ali que não se espelhe em algum dado da realidade.

Supor que no presente já se pode comemorar é ignorar a interdição do aborto, a escalada do feminicídio, a violência em todas as esferas e as injustiças institucionalizadas e atravessadas pela raça e pela classe.

A luta contra a opressão de gênero afeta a todos, pois obriga a repensar o lugar de cada um no mundo. Mas as mudanças trazem a angústia da indeterminação que é respondida por uns com o recrudescimento de posições retrógradas e, por outros, pela luta por condições mais justas e equânimes.

Manifestantes usam figurino de 'O Conto da Aia' em protesto no Dia da Mulher em Londres - Hollie Adams - 8.mar.2024/Reuters

Para quem se encaixa no segundo grupo, o sofrimento não pode ser subestimado, pois não é possível enxergarmos de uma vez por todas as dimensões nas quais a opressão opera. A "queda da ficha" —como no célebre quadrinho da Laerte— se perpetua num insight sem fim, para desespero dos que almejam mudanças rápidas. Todo dia nos deparamos com nosso machismo, todo dia precisamos combatê-lo.

Dentro do capitalismo, no qual a exploração e não a cooperação, é a base do funcionamento social, custará muito para destrincharmos os meandros nos quais gênero e subalternidade se confundem.

Os casais de hoje, que tentam trocar o pneu do relacionamento com o carro andando, têm que confrontar seu anseio por mudanças com as marcas inconscientes que carregam. A transformação que se dá no plano das ideias não acompanha o lento movimento das "camadas tectônicas inconscientes" que nos constituem. Isso é visível na incoerência entre o discurso feminista proferido por mulheres que se mantêm tuteladas ou em relações abusivas sem entender o porquê ou dos homens que se dizem desconstruídos mas continuam a reivindicar privilégios e controles.

Se sairmos da seara dos casais capturados por estereótipos de gênero e que reproduzem o pior com convicção, ainda assim presenciaremos o desencontro dentro dos casais que buscam equanimidade. E como não seria assim, se a justiça de gênero não tem nenhuma previsão de ser alcançada pela geração atual? Entender a condição em que vivemos requer sustentar o tempo de sua transformação, que pode soar infindável. Daí o risco de desanimar e desistir de se relacionar —o que em alguns casos se mostra legítimo, claro.

Para além da informação e do letramento, existe um espaço que só se transforma mediante uma boa dose de sofrimento. Sem arranhar o verniz que lustra nosso narcisismo, estamos fadados ao inferno das eternas acusações mútuas. Sem assumir que algo em nós escapa à nossa própria pretensão, a conjugalidade continuará a ser sinônimo de ressentimento, choro e ranger de dentes.

Não há militância que atinja esse outro lugar no sujeito, esse no qual ele repete aquilo mesmo que ele propõe transformar. Tampouco há como sustentar a mudança subjetiva sozinho, sem encontrar no campo social um apoio que o fortaleça.

Cada um dos dois sozinho estará fadado à arrogância e ao fracasso.

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