Siga a folha

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Por quanto tempo democracia vai respirar aliviada após derrota de Bolsonaro?

Camus mostrou que não há sociedades imunes à peste, mas ela sempre nos pega desprevenidos

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

O bolsonarismo, como uma febre malsã, vai, enfim, pouco a pouco, cedendo. Os democratas brasileiros respiram com algum alívio depois de tão longa agonia e até se permitem, aqui e ali, como vimos na Copa, imaginar que na vida há mais do que política e temor pela sobrevivência do nosso modo de vida.

Naquela noite de fim de outubro em que as urnas confessaram a derrota de Bolsonaro, houve alívio e alegria, mas ainda muita aflição com relação ao futuro próximo. Afinal, por quase quatro anos um golpe de Estado havia sido explicita e reiteradamente prometido, com data marcada (a eleição) e condições estabelecidas ("se a urna for eletrônica", "se não ganharmos", "se o Judiciário continuar esticando corda"). Quanto tempo até que ele ocorresse?

Manifestantes bolsonaristas entram em confronto com a polícia e promovem depredação após confusão iniciada na sede da Polícia Federal, em Brasília - Pedro Ladeira-13.dez.22/Folhapress

Quando o TSE correu para proclamar o resultado das eleições, e instituições brasileiras e governos estrangeiros se apressaram em reconhecer o eleito, havia nessa pressa, sem dúvida, a intenção de desencorajar aventuras antidemocráticas. Mas era também o registro público de um temor generalizado de autogolpe.

Quando a autoridade eleitoral adiantou a diplomação dos eleitos, depois de semanas de acampamentos golpistas, de vandalismo nas cidades e de violência nas rodovias, respirou-se novamente. Parecia consolidado um caminho sem volta para a normalidade democrática. A este ponto, o movimento nas ruas parecia reduzido a um Exército de Brancaleone, esfarrapado, diminuto, confuso, perambulando em busca da reentronização do seu messias.

O rugido dos temíveis generais sediciosos, a quem o jornalismo declaratório ofereceu voz e oportunidades de agendamento da opinião pública por anos, já não passa de um rosnado. Bolsonaro, o cavaleiro de deplorável figura, mal aparece, deprimido e desmilinguido, um fiapo da "Vontade de Poder" que atraiu para si toda a vitalidade dos que não aceitavam ser contidos pelos freios e peias da democracia liberal.

E mesmo a enorme orquestra de vozes, fúria e ímpeto dos ambientes digitais, que forneceram por anos um formidável reservatório de iliberais e obscurantistas a serviço do bolsonarismo, foi minguando até sobrar apenas os devotos mais radicais e aqueles cujo modelo de negócio não pode sobreviver sem ódio político nem indignação moral perpétua.

Então, sim, o bolsonarismo volta às sombras. Sem golpe nem revolução, nem multidões gigantescas em movimento uníssono "decidindo o futuro" de Bolsonaro —como ele pediu e fantasiou—, reconduzindo-o, no grito e no murro, à Presidência do país. A democracia pode respirar aliviada e até sorrir contente.
Por quanto tempo?

A este ponto, peço permissão ao leitor para me reconectar a uma outra crônica, a história de uma epidemia mortal contada pelo filósofo e escritor Albert Camus no seu célebre romance "A Peste" (1947).

É sabido que Camus usou a crônica da epidemia que flagelou os habitantes de uma cidade imaginária argelina para falar de todas as pestes, isto é, de todas as irrupções da maldade e da morte que tornam as nossas vidas e o nosso modo de viver subitamente sem sentido.

O que vale tanto para eventos como a peste nazista como para formas mitigadas de ondas de brutalidade e barbárie que irrompem, atormentam, destroem nossos projetos humanos de felicidade, antes de desaparecer.

Não sem que antes as enfrentem pessoas que "não sendo santas, recusam-se a admitir a praga", o flagelo, em nome não do heroísmo, mas da decência, da honestidade, como prega a moral existencialista de Camus.

Ele termina a sua crônica com a melancólica constatação de que não há vitória definitiva sobre a pestilência, que o alívio e a alegria que nos dominam quando cessa um flagelo continuarão sempre sob ameaça.

Do médico que lutou até o fim contra a peste ele diz: "Pois ele sabia o que essa multidão alegre desconhecia, e que se pode ler em livros, que o bacilo da peste nunca morre ou desaparece, que pode permanecer por décadas adormecido em móveis e roupas de cama, que espera pacientemente em quartos, adegas, baús, lenços e papéis, e que talvez chegue o dia em que, para desgraça e aprendizado dos homens, a peste desperte os seus ratos e os envie para morrer em uma cidade feliz".

Não há sociedades nem pessoas imunes à peste —eis a constatação. Apesar disso, ela sempre nos pega desprevenidos. A brutalidade cega, o vírus da ignorância nociva que passa de uns para outros, o fanatismo violento, a vontade coletiva de destruição, a pulsão de morte são da condição humana.

Apesar disso, essas coisas parecem desproporcional ao que sabemos dos seres humanos, não se enquadram, não têm cabimento. Assim, quando irrompe a peste não nos parece concebível ou aceitável, "é irreal, é um pesadelo que vai passar". Mas nem sempre passa e vivemos de pesadelo em pesadelo. Mas é preciso estar prontos.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas