Nobel de Literatura, Camus encontrou no futebol uma saída para o absurdo da vida

Sem idealismo, escritor via no esporte uma forma imediata de alcançar sabedoria

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M.M. Owen

[RESUMO] Apaixonado por futebol, o escritor Albert Camus via nesse esporte uma forma de alcançar sabedoria sobre a vida e os homens de maneira concreta e imediata, um contraponto ao idealismo isolado da realidade que, para ele, havia contaminado os intelectuais de sua época, levando-os a colocar as teorias acima dos seres humanos.

No dia 16 de outubro de 1957, Albert Camus estava almoçando num restaurante em Paris. Na metade da refeição, apareceu um funcionário da editora que publicava seus livros. O rapaz dispensou o garçom e deu a Camus uma informação que acabava de ser anunciada no rádio: ele receberia o Prêmio Nobel de Literatura

Uma semana mais tarde, Camus foi entrevistado pela televisão francesa. O escritor e seu interlocutor, contudo, não estavam sentados em algum estúdio confortável, discutindo o poder da palavra escrita. Estavam no estádio Parc des Princes, no meio de uma multidão de 35 mil pessoas, assistindo a uma partida entre o Racing Club de Paris e o Mônaco. 

As imagens em preto e branco estão preservadas no YouTube. O goleiro do Racing reage muito lentamente a um chute cruzado desviado, deixando a bola entrar no gol rente à trave mais próxima. A câmera corta para a arquibancada, onde Camus —lembrando cada vez mais um Humphrey Bogart de rosto mais suave— é questionado sobre o erro do goleiro. Ele pede leniência para o jogador.

 
Ao que eu saiba, foi a única vez em que um recém-ganhador do Nobel de Literatura foi entrevistado durante uma partida de futebol —e o fato de isso ser visto como algo incongruente e ligeiramente cômico é, em parte, o tema deste ensaio. 

Graças quase inteiramente a uma citação equivocada, mas amplamente difundida —“tudo que sei sobre a moral e as obrigações do homem eu devo ao futebol”—, o amor de Camus pelo esporte é fartamente conhecido. Esse amor, porém, não se limitou a uma nostalgia passageira ou a um único aforismo casual. 

Em 1959, menos de um ano antes de morrer, Camus disse a outro entrevistador que, ao lado do teatro, o futebol formara uma de suas duas “verdadeiras universidades”. Um dos maiores escritores franceses do século 20 identificou no futebol as formas de consciência mais potentes e valiosas. No drama da carne encenado no esporte, sentia-se testemunha da plenitude da vida em todo seu pathos e todas suas graças salvadoras.

Explicando sua decisão de premiar o escritor, o comitê do Nobel declarou que “a profundidade perspicaz de Camus ilumina os problemas da consciência humana em nossos tempos”. Essa descrição um pouco insossa desvia nossa atenção da intensidade e da angústia do trabalho do escritor

O problema central com que ele se defrontava era simples: a vida é absurda. Por quê? Porque estamos cheios de “uma ânsia por felicidade e razão”, mas nos deparamos em toda parte com “o silêncio irracional do mundo”. A modernidade detonou as velhas consolações da religião e revelou o universo como um vazio grande e gelado.

Nossa alma anseia por transcendência, mas, como escreve Samuel Beckett em “Esperando Godot”, “parimos em cima de uma cova, a luz brilha por um instante e então é noite outra vez”. Essa incompatibilidade básica entre nosso anseio psíquico e aquilo que a realidade proporciona é o que torna a vida absurda. 

Camus comparou a existência humana à de Sísifo, que na mitologia grega foi condenado por Zeus a rolar uma pedra enorme montanha acima, apenas para vê-la rolar para baixo novamente, repetindo tudo outra vez por toda a eternidade.

Então, o que fazer? O suicídio não era uma opção. Apenas agravaria a falta de sentido —e, de qualquer maneira, Camus adorava estar vivo. A tragédia estava precisamente no fato de a realidade ser tão magnífica, mas estar sempre escorrendo “entre meus dedos, como contas de mercúrio”.

Camus tampouco podia aceitar o “suicídio filosófico” da religião. Embora sentisse fascínio pela devoção religiosa —e, como muitas pessoas que passam a vida afogadas em palavras, de vez em quando dissesse a amigos que pretendia se retirar para um mosteiro—, ele próprio não a possuía. Suas crises de ascetismo sempre perdiam força. Camus queria estar no mundo, queria encarar o mundo de frente, sem se render ao desespero ou à ilusão, ambos os quais encarava como formas de capitulação psíquica.

Para ele, a única saída que nos resta é a aceitação plena de nosso dilema. Cada um de nós foi condenado pelo cosmos; cada um de nós tem sua própria pedra pesada para empurrar montanha acima. “A luta para chegar às alturas basta para preencher o coração do homem”, afirmou. 

Na filosofia de Camus, o sentido e o valor vêm da criatividade desafiadora e pessoal. Seu niilismo era banhado em êxtase. Estamos destinados ao esquecimento, disse Camus; todos sabemos disso, querendo ou não falar do assunto. Mas, como Sísifo, podemos viver com “a certeza de um destino arrasador, sem a resignação que deveria acompanhá-lo”, se escolhemos imbuir nossa condição de um esforço ardente. No “universo selvagem e limitado do homem”, todos podemos encontrar maneiras de empurrar nossa pedra com um sorriso determinado.

E, para Camus, uma das coisas “que nega os deuses e empurra pedras para cima” é o futebol. Camus já era apaixonado pelo esporte muito antes de escrever qualquer coisa sobre Sísifo. Como muitos dos maiores jogadores, descobriu esse amor na pobreza. Camus foi um órfão da guerra, criado em uma favela de Argel por mãe solteira e analfabeta. Sua avó o repreendia constantemente por jogar futebol, porque arriscava estragar seus sapatos da escola, que tinham sido uma despesa grande para a família. Mas Camus não se deixava desanimar. 

“O Primeiro Homem”, romance autobiográfico no qual estava trabalhando quando morreu, acompanha um garoto chamado Jacques. Em sua infância, o futebol é o reino de Jacques, e na adolescência ele tem obsessão pelo esporte. Jacques era Camus, que começou a jogar futebol em campos argelinos rústicos com “uma bola feita de trapos”.

No colégio, Camus foi visto como jogador excelente, tanto no gol quanto no ataque. Ele passou a jogar no Racing Universitaire Algerios (RUA) como goleiro. Em 1930, o boletim informativo do time elogiou Camus, então com 16 anos, por seu “jogo esplêndido”. 

Mas a vida dele mudou para sempre menos de dois meses depois. O adolescente começou a cuspir sangue; era a temida tuberculose (alguns de seus familiares acharam que a doença foi causada por ele ter ficado parado no frio após uma partida). A tuberculose acabou com quaisquer esperanças que pudesse ter de jogar futebol a sério. Seus pulmões foram apenas piorando, e ele passou o resto da vida tendo que tomar cuidado para não exagerar no esforço físico.

O amor de Camus pelo futebol nunca diminuiu. Quando teve seus primeiros empregos com jornalismo em Paris, esperava ansiosamente pela divulgação das pontuações, nas noites de domingo, torcendo por uma vitória de seu time do coração, o RUA. Em 1941, trabalhando como professor, treinou o time de futebol da escola onde ensinava e chegou a jogar de novo. 

Numa viagem ao Brasil para uma série de palestras, em 1949, seus anfitriões ficaram encantados quando ele pediu para assistir a uma partida de times locais.

Como Gonzales em seu romance “A Peste” (1947), Camus era conhecido entre seus amigos por nunca perder uma oportunidade de chutar uma lata na rua. O amor pelo esporte paira no segundo plano de todos os seus romances. Esse pensador intenso, que declarou que a única maneira de viver é revoltar-se incansavelmente contra a ausência de sentido, amava um mero esporte, amava-o com intensidade e coerência.

Consideremos o seguinte: o que poderia ser mais absurdo que 22 pessoas correndo atrás de uma esfera inflada de couro por 90 minutos, em um campo gramado retangular, acreditando que o número de vezes que a dita esfera atravessa duas linhas pintadas é uma questão da importância mais profunda? Segundo qualquer análise racional, o futebol é fundamentalmente ridículo.

Na análise absurdista, o esforço humano de qualquer espécie é fundamentalmente ridículo, e todo significado é, em última análise, imaginário. Recue até ter uma visão de longa distância do cosmos e você verá que não existe diferença essencial entre correr atrás de uma bola de futebol ou correr atrás de uma carreira, da primeira casa própria, da erradicação da injustiça social, de sua alma gêmea.

Todo o nosso esforço vai se exaurir, será esquecido com o tempo. Para encontrar sentido em algum lugar, pensava Camus, era preciso abordar a vida com mais do que apenas a razão fria. Era preciso filtrar a realidade através de diferentes estados de ser.

Como muitas pessoas que conheceram a pobreza real na infância, Camus era, em primeiríssimo lugar, um pragmático. Queria saber o que funcionava. E, como Ivan em “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski —um livro do qual gostava tanto que o adaptou para o teatro—, Camus percebeu que o que dá sentido à vida são as coisas que amamos “não com a mente, não com a lógica, mas com nossas entranhas”.

Essa crença na ideia de que o racionalismo tem seus limites foi uma das razões pelas quais Camus nunca se enquadrou perfeitamente na intelligentsia parisiense. Durante a guerra, foi editor-chefe do jornal Combat, da resistência francesa. Seus amigos compartilhavam sua repulsa pela ocupação nazista e aprovavam seus editoriais fervorosos e melancólicos. Ao longo dos dez anos seguintes, todavia, sua relação com os intelectuais franceses —principalmente com seu representante máximo, Jean-Paul Sartre— se deteriorou.

Quando os horrores do regime soviético começaram a vir à tona, Sartre e outros consideraram que os ideais justificavam as vítimas, que os gulags eram um custo lamentável, porém necessário da criação de uma sociedade igualitária.

Camus ficou horrorizado ao ver que, entre seus colegas escritores, “o governo dos campos de concentração é adorado, visto como instrumento de libertação”. Para ele, um pagamento à vista em sangue para garantir uma potencial utopia futura não valia a aposta. “É melhor errar por não matar ninguém que ter razão com valas comuns.” 

Sua rejeição do stalinismo levou a esquerda francesa a encará-lo como um pária. Durante as guerras coloniais, pressionado a apoiar a missão das forças guerrilheiras argelinas, Camus, em declaração que ficaria famosa, disse: “Estão plantando bombas nos bondes de Argel. Minha mãe pode estar em um desses bondes. Se isso é justiça, prefiro minha mãe”.

O amor de Camus pelo futebol só pode ser compreendido à luz desses embates intelectuais mais amplos. Na metade da década de 1950, ele já considerava que uma espécie de idealismo arejado e isolado da realidade havia contaminado boa parte do pensamento contemporâneo com uma forma de desonestidade anêmica. 

Para Camus, tolerar os assassinatos comunistas em massa era exatamente o tipo de coisa que ocorria quando intelectuais colocavam teorias acima dos seres humanos. Depois de receber o Nobel, ele se alegrou quando voltou a Argel para fugir da publicidade que acompanhava o prêmio e um motorista de táxi o reconheceu não como escritor famoso, mas como o antigo goleiro do RUA.

“A Queda”, seu romance de 1956, traz seu protagonista mais autobiográfico, Jean-Baptiste Clamence. “Nunca fui verdadeiramente sincero e entusiasmado exceto quando praticava esportes”, diz Clamence ao leitor. O jogo de futebol aos domingos em um estádio lotado é o único lugar onde ele se sente inocente. 

Foi mais ou menos nessa mesma época que a revista de antigos jogadores do RUA pediu a Camus que escrevesse algo sobre seus tempos no futebol. Ele respondeu: “Depois de muitos anos nos quais o mundo me proporcionou grande número de experiências, o que sei com mais certeza no longo prazo sobre a moralidade e as obrigações dos homens... aprendi com o RUA”.

Essa grande observação encerra toda a desilusão da década anterior em Paris. O escritor rejeitava o que via como abstração desumanizadora do discurso sartriano e sugeria que a turbulência psíquica de uma partida de futebol era um espaço ético mais honesto que os cafés esfumaçados parisienses.

Essas observações também encerravam uma crítica mais ampla da razão em geral, uma expressão do ceticismo duradouro de Camus em relação à ideia de que o caminho para a sabedoria passa pela reflexão seriamente ponderada. 

Contrariamente à tendência de tipos mais cerebrais de enxergar o futebol (ou qualquer esporte) como algo básico, infantil, estupidamente físico, Camus saudava o esporte como uma forma de “alcançar sabedoria sobre a vida de maneira imediata, e não de uma grande distância”.

Em um nível mais individual, pensava que a disputa intensa e encarnada de uma partida de futebol mostrava às pessoas quem elas realmente eram. Para ele, o futebol arranca certos artifícios do caráter, os narcisismos que nos são impostos pela sociedade, e nos oferece um espelho. 

Desconfio que qualquer pessoa que já tenha jogado futebol entenda o que ele quer dizer. Na visão de Camus, no dia a dia ou mesmo na página escrita é relativamente fácil representar-se como alguém diferente de quem você realmente é, mas é quase impossível contar a mesma mentira no calor da competição física.

E há as razões mais profundas que levaram Camus a identificar uma espécie de magia no futebol. Essas são de natureza mais apolítica —do mesmo modo como toda a profundidade que descobrimos na infância é apolítica, do mesmo modo que a situação insuportável de Sísifo tem origens muito mais profundas que a política. 

Ao longo da vida, o escritor fez incursões nos textos budistas, começou a apreciar o insight fundamental de Buda: que a maior parte do sofrimento humano vem do movimento incansável e angustiante da mente.

Camus desfrutava prazeres sensuais de todos os tipos. Ele gostava de dançar, gostava de comer sardinhas acompanhadas de goles de Cinzano. Na semana antes de morrer, escreveu cartas de amor a cinco mulheres diferentes. Nunca foi, contudo, um hedonista.

Quando se leem seus diários em ordem cronológica, percebe-se que ele buscava, acima de tudo, uma imobilidade contente, mas atenta e concentrada, algo que podia vislumbrar brevemente do outro lado do êxtase sensorial. Com o passar do tempo, foi descobrindo isso mais e mais na natureza, nos “evangelhos de rocha, céu e água”.

Buscava uma vida “repleta dos sinais do mar e do canto ascendente dos grilos”. Desconfio que o primeiro lugar em que encontrou tal estado de ser iluminado foi naqueles campos de futebol da Argélia, com aquelas bolas de trapos.

Mas o que dizer de quem acompanha o esporte como espectador? Bem, para começo de conversa, há o ato simples realizado por cada torcedor de escolher um clã e partir para travar batalha indiretamente. Camus sempre acompanhava os resultados do RUA. Mais tarde, torceu pelo Racing Club de Paris (como estava fazendo em sua entrevista pós-recepção do Nobel) porque usava as mesmas cores, azul e branco, que seu time universitário. 

No coletivo de torcedores, teria enxergado um microcosmo do absurdo da existência. Imagino que ele se comprazia discretamente na irracionalidade cheia de alegria do esporte, porque teria visto que tudo que se aplica à vida de Sísifo se aplica também ao torcedor de futebol. 

Jogar para um time ou torcer por ele é investir sem qualquer esperança de um final feliz permanente. Se perdermos, vamos ter que empurrar a pedra morro acima outra vez. E, mesmo se ganharmos, vamos acabar derrotados algum dia e então teremos que rolar a pedra para cima de novo. 

Não existe nenhum momento futuro em que qualquer time, por melhor seja, vá resolver o derradeiro teorema do futebol de tal modo que possamos todos fazer as malas e voltar para casa. Uma aspiração desse tipo é absurda precisamente porque faz parte do reino do racional. 

Como no teatro, o importante é continuar subindo no palco. Cada vez que a seleção inglesa é eliminada de um grande torneio internacional, no meio de uma névoa de depressão regada a cerveja recebo um torpedo de meu pai: “Será da próxima vez”. Não é questão de nenhum de nós dois acreditarmos nisso; o importante é que, daqui a dois anos, vamos ter que empurrar aquela pedra novamente, imbuídos da mesma esperança frágil, irresistível, infantil. 

Trata-se de imaginar a festa ao mesmo tempo em que o mundo nos promete uma nova decepção. Talvez seja essa a única espécie de fé que resta para as pessoas que trocaram deuses e santos por craques de futebol e centroavantes.

Em “O Estrangeiro”, Meursault vê os jogadores do time local voltando para a cidade de bonde após uma vitória em campo, “cantando e gritando alto que seu time nunca ia morrer”. Mas vai, não vai? Mais dia, menos dia, a idade vai alcançar mesmo os maiores craques. Mesmo assim, “a natureza milagrosa da mecânica do corpo”, segundo Camus, pode nos elevar acima da experiência mundana, com seu passar do tempo. 

Uma verdade estranha do futebol é que longos trechos dele são entediantes. Como milhões de outras pessoas, Camus assistiu sem pestanejar a longos trechos de futebol esquecível, apenas pela chance de testemunhar aqueles instantes em que o jogador parece ficar suspenso no ar noturno e acomoda a bola no peito de seu pé com ternura perfeita; quando um passe lânguido faz a bola atravessar o campo diagonalmente, como uma estrela candente; quando uma sequência de passes forma triângulos de geometria perfeita.

Momentos como esses não se resumem à precisão técnica. Nosso dilema absurdo é fundamentalmente físico: é o que a deterioração física de células e neurônios acabará provocando para todos nós. A cada vez que o futebol é bem jogado, algo é roubado da entropia previsível do material. E, quanto maior o jogador, maior é o roubo.

É por isso que todos queremos ver os maiores craques jogando —os melhores jogadores podem passar a impressão de escapar completamente das leis da vida física. Todas as grandes jogadas de futebol são fundamentalmente improváveis. Ser excelente com o corpo significa dar uma banana para a ira de Deus, e testemunhar essa excelência é descobrir o que, para Camus, faz o futebol valer a pena: os momentos de transcendência gloriosa, terrena, desvanecente.

Mesmo que você esteja desabado no sofá com um prato de comida no colo, os momentos intensos do futebol vistos na televisão oferecem vislumbres daquela presença pura, não? Você não se flagra assistindo com o corpo, correndo em direção a uma bola invisível ou preparando-se para encaixá-la dentro da trave invisível mais distante?

A beleza, escreveu Camus, é como “um brilho de eternidade em um minuto que gostaríamos de esticar por toda a extensão do tempo”. O futebol, para ele, era uma longa e insaciável busca da beleza —feita por quem joga e quem assiste ao jogo.

Os únicos paraísos verdadeiros, escreveu Proust, são aqueles que perdemos. Para Camus, sua juventude pré-tuberculose e seus melhores tempos no futebol estavam estreitamente interligados, formando um tempo anterior àquele em que as verdades mórbidas da vida o alcançaram.

Seu exemplo é um caso agudo, mas contém algo de universal. Todos que amam o esporte profundamente já o jogaram e se recordam de jogá-lo com uma pureza e sofreguidão que são mais difíceis de recuperar do que no passado.

Não é por acaso que a recordação mais prezada por todo amante do futebol é a de bater bola num parque com seus amigos, quando eram crianças. Esse é o mito de criação do futebol, o que liga o comentarista milionário, o ex-jogador profissional, o torcedor que arranca os cabelos. É o misticismo, na versão dos sujeitos que tentam acertar o gol. 

É por isso que Camus, em “A Queda”, emprega uma palavra inesperada, “inocência”. Houve um tempo em que o corpo se movia com a leveza do fogo puro, quando sua atenção era nítida e aguçada como uma lâmina de vidro. Houve um tempo em que a ética desta vida refratária, insondável, era tão simples quanto jogar até ouvir o apito assinalando o final da partida e cumprimentar os adversários ao final. O futebol nos deu isso, por um tempo breve. 

Dois anos antes de morrer, Camus comprou uma casa em Lourmarin, vilarejo serrano modorrento 80 quilômetros ao norte de Marselha. Conheceu os jogadores do time de futebol local; pagou os uniformes da equipe e costumava tomar café com eles após as partidas. Provavelmente teria continuado assim por anos. 

Em janeiro de 1960, seu amigo de longa data e editor de seus livros, Michel Gallimard, ofereceu a ele uma carona em seu carro para voltar do sul da França a Paris. Camus já tinha passagem para viajar de trem, mas decidiu no último instante fazer o trajeto com seu amigo. Um mecânico que consertara o carro de Gallimard havia pouco tinha dito que o veículo era “um caixão sobre rodas”. Ele tinha razão. O carro saiu da estrada e se chocou com uma árvore. Camus teve morte imediata.

O manuscrito inacabado de “O Primeiro Homem” foi encontrado no porta-malas do carro batido. Um ano antes Camus dissera a seu amigo que havia escrito apenas um terço de sua obra completa, que sentia que estava apenas engrenando. Anteriormente, afirmou que, como epítome da crueldade aleatória, nada poderia ser mais sem sentido que morrer num acidente de carro. Seu corpo foi sepultado nas montanhas de Lourmarin. Em seu enterro, os jogadores do time de futebol local carregaram seu féretro.

Arthur Hopcraft escreveu em “The Football Man” (1968) que o futebol “possui conflito e beleza, e quando essas duas qualidades estão presentes juntas em algo que é apresentado para a avaliação pública, elas representam boa parte do que eu entendo como sendo arte”. 

A arte é a maneira mais antiga criada pelo homem de encontrar sentido e transcendência no vazio. Camus identificou no futebol uma forma de arte. Para ele, o futebol podia ser comparado ao teatro: um drama de ação física que substituiu os adereços da razão pela realidade do encarnado. 

Não há consolo final em vista, declarou Camus; não há como fugir do dilema absurdo que nos confronta. Só temos esta vida, este aqui e agora. Portanto, mergulhe de cabeça. Os ensinamentos brutos da realidade física, o amor sincero pelo jogo irracional, os ecos do pathos inocente da infância —são pequenos momentos em que podemos transcender nossa prisão material. Esse era o jogo belo, para Camus. 


M.M. Owen é escritor e doutor em literatura pela Universidade da Colúmbia Britânica.

A íntegra deste texto foi originalmente publicada na revista britânica The Blizzard.

Tradução de Clara Allain.

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