Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Descrição de chapéu Eleições 2022

O bolsonarismo é uma arte de inventar histórias

Extrema direita não se importa com a verdade e vê comunicação política como parte de guerra total

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A política é a arte de contar boas histórias. Para ser boa, a história tem que capturar a imaginação e envolver na trama os que a escutam de modo tão intenso que a ela entreguem não apenas a mente como também os sentimentos.

Uma boa história não precisa ser inventada, embora a invenção nos conduza por fábulas e contos desde que gente é gente, nem precisa falar do mundo ou da realidade e das suas circunstâncias, mas, se quiser, pode.

Jair Bolsonaro almoça em restaurante antes de ato de campanha em Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro - Mauro Pimentel - 27.out.22/AFP

As histórias que a política conta, contudo, pretendem ser relatos fieis das coisas, descrição dos acontecimentos reais. Não são histórias para dormir ou para que a imaginação divague, embora conduzam a imaginação e dirijam os afetos. O que pretendem é dar sentido aos eventos que estão diante de nós, organizá-los em um encadeamento temporal e em fluxos plausíveis de causa e efeito.

Contar histórias em comunicação política não é atividade neutra, é orientar a interpretação dos fatos, é dirigir a compreensão das coisas, é oferecer a quem as aprecia a versão do sentido das coisas que interessa ao nosso lado.

A extrema direita é mestre em contar histórias, já nasceu assim, e em transformar em comunidades os que creem nas mesmas narrativas. O campo democrático também narra e espera que cada vez mais pessoas acreditem, por exemplo, na grande história da democracia brasileira ameaçada pelo bolsonarismo —que, embora seja verdadeira, custou quatro anos e mais os mortos da pandemia para formar uma comunidade consistente de crentes na plausibilidade do que vinha sendo contado.

A democracia ameaçada não inflamou corações com a mesma instantaneidade com que a saga da suposta corrupção moral da infância feita pela esquerda, por meio da indução à homossexualidade e do estímulo à erotização das crianças e à pedofilia, embora a primeira seja uma história rigorosamente verdadeira e, a segunda, inteiramente falsa.

O bolsonarismo é mais eficiente na contação de histórias por duas razões. Primeiro, porque não precisa lidar com o inconveniente com que se depara quem conta histórias verdadeiras: os fatos. As suas narrativas não se importam com a verdade, o importante é que façam sentido e sejam consideradas plausíveis por quem as consome. O sarrafo da plausibilidade, contudo, estará cada vez mais baixo à medida que os que compartilham tais histórias vão se tornando uma comunidade de crentes.

A credulidade e a confiança nos narradores anulam todos os filtros, até o ponto que mesmo o relato mais improvável para os "de fora" encontrará um terreno acolhedor e fértil na imaginação do fiel. De modo que o sujeito que acreditou na história de que o STF impediu Bolsonaro de salvar o Brasil não será capaz de citar um único fato verdadeiro em defesa do que aprendeu a acreditar, mas isso pouco importa para a sua certeza.

Por outro lado, todos os liberais do mundo podem declarar que Bolsonaro é um perigo para as liberdades e isso não fará qualquer diferença na convicção bolsonarista de que ele é o grande campeão contra os liberticidas.

Quem assume a obrigação de tecer uma narrativa apenas depois de apurar os fatos, como no jornalismo, corre sempre o risco de ver a sua linda história assassinada impiedosamente por uma gangue de fatos brutos. Esse risco não corre quem cria os fatos que usará para montar os relatos, posto que, se uma história é bem contada, os fatos que façam a gentileza de não atrapalhar.

A segunda razão é que o bolsonarismo não se incomoda de sujar as mãos. Escrúpulo saiu do grupo faz tempo. Comunicação política aqui é parte de uma guerra total contra o inimigo. Inventamos do nada, modificamos, distorcemos, fazemos qualquer negócio, inclusive usamos fatos reais quando calha de a realidade se encaixar na narrativa.

Dizem que a primeira vítima de uma guerra, mesmo uma guerra de informações, é a verdade. Pode ser, mas as histórias inventadas ocupam com vantagens o lugar da falecida. Depois de algum tempo, as pessoas já nem sabem distinguir entre fatos e histórias e entre as narrativas verdadeiras e as inventadas. Não é a verdade o que morre, mas a nossa capacidade de reconhecê-la, mesmo que ela grite na nossa cara e por diversas fontes.

Entretanto, o maior perigo desse mundo embaralhado por fake news e histórias de conspirações é que mesmo quem se julga crítico e consciente pode um dia acordar dando como certas determinadas coisas que, a rigor, foram plantadas por meio de narrativas inventadas.

De tanto ouvir a saga da perseguição dos indefesos bolsonaristas pelos ditadores de toga do STF e do TSE, até pessoas cujo discernimento eu respeito me perguntam sobre os "exageros do Judiciário", como se liberdade de expressão fosse um direito constitucional a inventar as histórias que nos servem para ganhar a guerra contra os nossos inimigos.

Sim, amigos, em um mundo de histórias inventadas, nem você e eu estamos completamente imunes.

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