Entre julho e agosto de 1949, o escritor franco-argelino Albert Camus percorreu o Brasil. O autor, que conquistaria o Prêmio Nobel de Literatura oito anos depois, visitou as cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Olinda, Porto Alegre e São Paulo.
Ao longo da viagem, conheceu nomes importantes da cultura brasileira, como Oswald de Andrade e Abdias do Nascimento, deu palestras e participou de celebrações tradicionais, como a Festa do Bom Jesus em um terreiro de candomblé de Caxias (RJ).
Em sua passagem pelo Rio, Camus conversou com a Folha. Ao longo da entrevista, analisou o período do pós-guerra, comentou a importância social do teatro e falou sobre seu romance "A Peste", publicado em 1947.
"A única maneira de unir as pessoas ainda é mandar-lhes a peste", escreveu em uma passagem deste romance, narrativa de uma epidemia na cidade de Orã, na costa argelina, que termina por dizimar metade de sua população.
O enredo de "A Peste" é costurado por temas como o medo, a morte, o isolamento. E também a coletividade, a fé e a solidariedade face à tragédia imposta por um inimigo invisível e letal.
O livro também nos lembra que, por mais que se queira, a peste não pode "chegar e partir sem que o coração dos homens seja transformado".
Sete décadas depois, em meio à pandemia do coronavírus, "A Peste" retornou às listas de mais vendidos em países da Europa. No Brasil, a editora Record apontou um aumento de 65% nas vendas do título no último mês de março.
Também autor de obras como "O Estrangeiro" (1942) e "O Homem Revoltado" (1951), Camus é conhecido como "filósofo do absurdo" por sua maneira de articular literatura e filosofia para esmiuçar as diferentes condições humanas. Ele morreu em 1960, em decorrência de um acidente de carro no interior da França.
Leia a conversa entre o escritor e a reportagem da Folha, publicada originalmente em julho de 1949. O texto é republicado agora na série Entrevistas Históricas, que integra os projetos especiais do centenário da Folha, a ser celebrado em fevereiro de 2021.
Estamos vivendo uma época de aproximações culturais em que os povos e as nações, através de intercâmbio de homens e ideias, procuram fortalecer as correntes que nos conduzem ao estuário comum da mais ampla compreensão humana.
A França e o Brasil, em todos os períodos e fases da história moderna, são dois países que se completam quer pelos laços de latinidade, quer pelas tendências e aspirações comuns que sempre demonstraram no processo das grandes causas universais.
Visitas mútuas
Inúmeras são as personalidades francesas que nos têm visitado ultimamente, e, por outro lado, grande tem sido a afluência de artistas e homens de cultura do Brasil que vão visitar a França. Tais visitas são direta ou indiretamente patrocinadas pelos organismos de intercâmbio cultural, o que evidencia uma compreensão segura das necessidades espirituais dos dois povos.
E não é verdade que apenas nós temos o que aprender na França. Ainda recentemente um grande historiador e sociologo francês declarava aos jornais que os europeus têm para nos dar os ensinamentos de sua vasta cultura acumulada e que nós, em troca, temos para oferecer-lhe o exemplo das nossas descobertas, realizações e audácias.
Albert Camus
E esse é mais ou menos o pensamento de Albert Camus. Mas, antes, cumpre dizer duas palavras sobre esse grande espírito da moderna França, o mais jovem de seus escritores que haja conquistado em qualquer época tão alta notoriedade em todos os centros cultos do mundo.
Camus é um escritor de aguda penetração nos fenômenos humanos e sociais. Artista da língua, psicólogo e, sobretudo, um homem que colheu na própria sustância da vida o material de sua obra literária.
Teatrólogo e, principalmente, romancista, tornou-se mundialmente conhecido com o seu romance "A Peste", que foi interpretado como mensagem, a mais profunda, nascida das inquietações da nossa época ainda pesada de apreensões e angústias.
Pessoalmente, Camus é um espírito transbordante de jovialidade, profundamente cavalheiro, cheio de humor, mas daquele humor muito francês que faz o parisiense o mais cordial e o mais comunicativo dos homens. Tivemos essa impressão logo ao primeiro contato, quando nos recebeu, ontem [ ], na Embaixada da França, no bairro do Flamengo.
Foi Camus, aliás, quem iniciou a entrevista conosco mostrando-se deslumbrado e curioso com as belezas do Rio.
A paz do presente
Só depois de atendermos às suas interpelações foi que encontramos uma oportunidade de perguntar-lhe sobre o que pensava sobre a atualidade do mundo. Disse-nos o escritor:
"Não me preocupo muito com o futuro da humanidade; o que me interessa é a gente que vive hoje —seus filhos— para os quais me sinto pleno de ternura. É a conservação de suas vidas que tem significação para mim e me faz desejar a paz. Mas não esperamos encontrá-la entre os nossos presentes de ano novo.
Cada um de nós, num esforço pessoal, através da prática diária de boas ações e pensamentos sadios, formando uma espécie de corrente protetora, forneceremos à geração contemporânea boas parcelas de cooperação.
Descuidos e deslizes e eis, novamente, a quebrar a harmonia do universo, o rugir apavorante da guerra.
Não poderemos nos quedar alheios e distraídos. Nem o momento comporta atitudes de indiferença. Não durmamos, pois, que a paz será uma realidade, ela que, agora, não passa de uma promessa."
'A Peste'
O romance de Camus de maior sucesso universal é, sem dúvida, "A Peste". Parece ter o sentido de uma mensagem pessoal sobre problemas de profunda expressão humana. Portanto, perguntamos-lhe se esse livro significava a sua crença na humanidade.
Depois de outras considerações o escritor frisou:
"Sim. Creio muito na humanidade —creio nos homens— mas com uma crença um tanto relativa. Nesse sentido, aliás, escrevi 'A Peste', que penso não ser uma expressão desalentada sobre o futuro."
Elogio a um poeta
Passou Camus a falar sobre arte e os artistas da atualidade. Referiu-se a vários nomes, alguns quase desconhecidos no Brasil. Citou, com grande entusiasmo e ternura, a obra de um poeta francês —"um homem rude dos campos"— dizendo que a sua poesia surrealista é de tal forma grandiosa que se coloca, a seu ver, entre os maiores nomes da arte poética de todos os tempos. Este poeta é René Charles.
Insistimos com ele para que citasse outros nomes de sua preferência nos domínios da arte. Disse-nos, então, o autor de "O Mal-entendido":
"Os maiores artistas são aqueles de quem não se fala —os obscuros, os que realmente vivem para sua própria arte."
Paris e Rio
Passando a falar sobre o Rio, Camus revela-nos logo estar profundamente tocado, na sua sensibilidade, pela colorida beleza de nossa natureza tropical.
"Talvez porque também tenha nascido nos trópicos, na África Francesa, misteriosa e profunda. Um sentimento telúrico parece identificar-me com o Brasil! Gostaria de compreender a gente brasileira mais na intimidade, penetrar na alma do povo, sentir as suas aspirações e passear pela grande geografia do país."
Manifestou, então, curiosidade pelo Amazonas, dizendo que gostaria de "beber na água da fonte e conhecer o povo em sua expressão de pureza essencial".
E depois, num feliz paralelo, expressou o seu pensamento sobre as duas capitais frisando:
"Paris é uma composição artística, e o Rio, uma criação da natureza. É a mesma diferença que existe entre um manequim encantador e uma camponesa plena de graça natural. Pessoalmente sempre me senti encantado pelas jovens do campo."
A palestra tomou o rumo do teatro e após interessantes comentários sobre o teatro moderno, Albert Camus considerou:
"Deve haver uma função social no teatro. Grande parece ser sua influência sobre a mentalidade do povo, pois os governos às vezes chegam ao ponto de interditar peças. Quanto ao cinema, ele poderia ser um maravilhoso instrumento de educação.
No entanto, tornou-se um empresa que vem embrutecendo a inteligência internacional. Deve-se isso ao fato de antes de fazer arte, os produtores e exibidores se preocupam exclusivamente em ganhar dinheiro. O conceito de moral que se pode extrair dessa opinião é que a arte não pode subsistir onde predomina exclusivamente o interesse monetário."
Camus é esportivo e jovial. Parece ter adotado com harmonia, para si mesmo, o velho provérbio latino —mens sana in corpore sano [mente sã em corpo são]. Falamos-lhe de esportes. E foi com grande satisfação que ouvimos o filósofo dizer:
"Os intelectuais têm grande necessidade de praticar esportes e os esportistas não perderão nada em se ocupando das coisas da inteligência. Todos, assim, estarão contentes."
Informou-nos também que é entusiasta do futebol e da natação.
Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.