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Marcelo Rede

Bíblia na escola: um debate que nasceu torto

O que é inadmissível é o uso do livro religioso nas escolas como um instrumento de proselitismo, como propaganda de uma crença específica

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Marcelo Rede

É doutor pela Universidade de Paris 1-Panthéon-Sorbonne e professor de história antiga da USP

A maioria dos políticos brasileiros nunca demonstrou grande preocupação em abastecer de boa literatura as nossas escolas e bibliotecas públicas. No entanto, mais recentemente surgiram várias iniciativas para que o Estado adquira e distribua para alunos e leitores um livro. Não se trata, é claro, de um livro qualquer. Trata-se da Bíblia.

As primeiras iniciativas partiram de políticos evangélicos, em geral situados à direita do espectro político. Mas o potencial eleitoreiro não se limitou aos conservadores. Recentemente, durante um congresso pentecostal, o governador petista do Ceará, Elmano de Freitas, prometeu fornecer Bíblias às escolas de seu estado. A fala ia ao encontro de uma proposta de lei que inclui o livro religioso como temática transversal nos currículos das escolas cearenses, de autoria do deputado Apóstolo Luiz Henrique.

A Bíblia é, antes de mais nada, um produto cultural e uma obra literária das mais importantes da histria humana - Folhapress

A possibilidade de o Estado, que é laico, comprar com dinheiro público um livro religioso não passou desapercebida, e o Ministério Público já havia entrado com ações questionando a legalidade dessas ações. Com a grande dose de desinformação, típica desse debate, alguns afirmaram que o MP seria contra a Bíblia. Na verdade, o que os promotores questionam é a constitucionalidade de o poder público determinar através de uma lei a aquisição e distribuição de um livro religioso em detrimento de outros.

O caso está nos tribunais e, modestamente, eu penso que o MP tem perfeitamente razão. Em uma sociedade multirreligiosa e em um Estado que, além de ser laico, deve ser o garantidor de todas as manifestações religiosas, seria uma interferência indevida e indesejável na vida escolar e cultural.

Isso significa que a Bíblia não deva estar nas escolas e bibliotecas públicas? Pior ainda, que se deva proibi-la nesses ambientes? O fato é que esse debate nasceu tão torto que uma outra dimensão importante foi completamente perdida e merece ser resgatada.

A Bíblia não é apenas um livro religioso. Sua natureza religiosa, aliás, depende mais do seu uso durante séculos do que de sua origem. Em grande parte, ao menos, as narrativas bíblicas não nasceram como escritura religiosa. Em outros termos, a Bíblia é, antes de mais nada, um produto cultural e uma obra literária das mais importantes da história humana.

Por mais de 2.000 anos, sua influência nas artes e na literatura foi gigantesca. Como um leitor poderia compreender algumas das principais obras literárias sem poder consultar suas referências bíblicas? Pensemos na "Divina Comédia", de Dante, ou em ’"Os Lusíadas", de Camões. Como um aluno entenderia as pinturas de Caravaggio ou as esculturas de Michelangelo sem consultar as narrativas bíblicas?

Portanto, seria perfeitamente normal e desejável que um professor em sua sala de aula analisasse trechos da Bíblia para falar de movimentos artísticos ou literários. Do mesmo modo, as narrativas bíblicas podem ser trabalhadas como documento histórico, de forma crítica como qualquer outro texto antigo, sem serem tomadas elas próprias como "a" verdade histórica pronta e acabada.

Outra coisa, completamente diferente e inadmissível, é o uso da Bíblia nas escolas como um instrumento de proselitismo, como propaganda de uma crença específica. Este é o perigo presente na atual iniciativa dos políticos: a inclusão da Bíblia em escolas e bibliotecas públicas está servindo a um interesse eleitoreiro que beneficia uma denominação religiosa.

A inserção da Bíblia nas bibliotecas e, principalmente, nas escolas deveria ser parte de um projeto cultural e pedagógico. A escolha dos livros de um acervo público deve ser livre das imposições políticas e cabe, essencialmente, aos professores e gestores culturais, como os bibliotecários, ouvindo o público interessado de alunos e leitores.

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