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Maria Bochicchio

Como Camões se tornou o maior nome da língua portuguesa

Poeta, nascido há 500 anos, ultrapassou as fronteiras do mito e da história para ser um homem de nosso tempo

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Maria Bochicchio

Professora, ensaísta e tradutora, é doutora em literatura contemporânea portuguesa e coordenadora da linha de investigação de poética e retórica do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos (CIEC) da Universidade de Coimbra

[RESUMO] Ícone da memória coletiva da língua portuguesa, Camões expressou em sua poesia poderosa valores marcantes do Renascimento, como a afirmação da dignidade humana e a valorização da ciência e da razão, criando uma escala de valores éticos e estéticos de grande atualidade.

A memória registra um certo olhar, mais depressa impõem-se o aspeto do corpo, o movimento da sua poesia, o que passa no ar dos séculos quando alguém existiu, foi lido e abandonado ao seu destino e de repente recomeça a andar depressa na nossa atualidade.

Os cinco séculos que nos separam de Camões não são uma barreira, mas uma ponte que nos aproxima deste ícone da identidade e memória coletiva.

A imagem apresenta um retrato em tons de sépia de Luís de Camões, o célebre poeta português. Ele é representado com uma expressiva gola elizabetana e uma armadura parcial, sugerindo sua posição como um homem de letras e, possivelmente, um passado militar. Seu olhar é direto e sua barba e bigode são estilizados de acordo com a moda de sua época.
Retrato do poeta Luís de Camões, produzido nos anos 1570 por Fernão Gomes - Reprodução

Luís de Camões é o poeta sem túmulo e sem linhagem, sem antepassados ou árvore genealógica certa.

Nascido por volta de 1524/1525, Camões viveu em período turbulento da história portuguesa, marcado pelo Renascimento e pelas grandes navegações. Ainda jovem, foi para Coimbra, onde é provável que tenha estudado humanidades. Não se sabe muito sobre esses anos, mas é certo que essa fase foi crucial para a formação do poeta, e do homem, que mais tarde viria a exaltar os feitos do seu país nos versos imortais de "Os Lusíadas".

A vida de Camões foi repleta de dificuldades e desventuras. Em meados da década de 1540, após um incidente não totalmente esclarecido, ele foi exilado para o Oriente. Durante sua estadia em Goa, Macau e outras partes do império ultramarino português, Camões serviu como soldado e administrador, o que lhe proporcionou uma visão direta dos desafios e das oportunidades enfrentados pelos portugueses longe de sua terra natal.

Essas experiências se refletem vividamente em sua poesia, repleta de referências a batalhas, mares distantes e encontros culturais. Contemporâneos de Camões foram importantes figuras, como o tratadista Francisco de Holanda, o pintor Fernão Gomes, o escritor Fernão Mendes Pinto, o historiador Francisco de Andrade ou os poetas Diogo Bernardes, António Ferreira, dom Manuel de Portugal e Jerónimo Corte-Real, que a força poética de Camões quase ocultou.

Camões faleceu em 1580, segundo uns, ou 1579, de acordo com leituras que outros fazem dos documentos encontrados pelo conde de Juromenha na Torre do Tombo em Lisboa, no século 19. Camões foi vítima da peste que grassava e acabou sepultado não se sabe ao certo onde —presume-se que na capela do campo de Sant’Ana, em Lisboa.

Em 1580, o presidente da Câmara Municipal, Rosa Araujo, propôs a aquisição da casa onde Camões viveu os últimos anos da sua vida, mas os políticos que compunham a casa não concordaram, achando exorbitante o preço de dez contos de reis.

Pintura do navegador Vasco da Gama
Pintura do navegador Vasco da Gama - Domínio público

Anos depois, a casa foi demolida, conforme as memórias de Júlio de Castilho. Sobre a campa de Camões, em data não precisa, dom Gonçalo Coutinho, seu amigo, mandou colocar uma lápide, desaparecida com o terremoto de 1755.

Camões morreu na penumbra, em parcas condições financeiras, conhecido principalmente por "Os Lusíadas", um épico que narra as aventuras de Vasco da Gama e os desafios dos navegadores portugueses na rota para a Índia. Ele deixou um legado que transcendeu gerações. A sua obra foi sempre um símbolo de uma identidade múltipla nacional e um testemunho da era das descobertas.

Camões soube captar os contrastes de seu tempo, marcado tanto pelo brilho das conquistas quanto pelas sombras da exploração, deixando para a posteridade uma obra que ainda hoje é celebrada pela sua beleza e relevância. É uma voz atemporal que ainda dialoga com o presente.

Camões viveu na fase final do Renascimento, período marcado por grandes mudanças, sobretudo em consequência do afastamento das ideias da Idade Média. Neste tempo, surgiu a preocupação ética da afirmação da dignidade do ser humano, colocada no centro do universo, onde se privilegiavam a razão e a ciência.

Camões revisitou a Antiguidade Clássica, o que, somada às grandes navegações e às suas consequentes e múltiplas descobertas, contribuíram para um diferente entendimento da história da humanidade que vigorava até então.

Ao retratar o poeta como um produto crítico do Renascimento, teremos de sublinhar como ele humanizou deuses e demônios nos "Lusíadas" —e como suas experiências no Oriente influenciaram a sua escrita, trazendo uma perspetiva global rara na sua época. O grande modelo dos "Lusíadas" é a "Eneida", de Virgílio, embora Camões conhecesse o "Orlando Furioso", de Ariosto, e a "Odisseia" homérica.

O poeta, com sua poderosa habilidade lírica, capturou com perspicácia a complexidade da condição humana, não apenas glorificando os feitos portugueses, mas deixando transpirar em seus versos os sinais da crise espiritual e política que estava por vir.

Em fins do século 16, Portugal enfrentou um período de instabilidade política e declínio econômico, o que foi marcado sobretudo pela crise da sucessão ao trono de Portugal em 1580 e a consequente união de sua Monarquia com a da Espanha, que vigorou até 1640.

A reação de Camões ao clima de desalento que já pairava no ar foi caracterizada por uma idealização de suas figuras heroicas, como Vasco da Gama. O escritor era visto, neste período, mais como um poeta épico do que lírico, sendo sua poesia frequentemente citada em discursos políticos e literários como exemplo de virtudes nacionais.

No século 18, o Iluminismo trouxe uma nova luz à obra de Camões. Neste período marcado por um renovado interesse pela razão, pela ciência e pelo questionamento das autoridades tradicionais, houve um esforço para reexaminar e editar suas obras de maneira mais crítica e acadêmica. A figura de Camões foi integrada ao movimento cultural que buscava fundamentar o desenvolvimento do país no conhecimento e na valorização de suas próprias tradições literárias e históricas.

Este período também viu a emergência de críticos que começaram a explorar as dimensões líricas de sua obra, prestando atenção ao seu uso sofisticado da linguagem, a sua profundidade emocional e a seu domínio das formas clássicas. Camões passou a ser visto como um mestre da lírica, cuja habilidade em expressar o universo das emoções humanas precedia e influenciava os românticos.

No século 19, foi tomado como um ícone do romantismo português. Durante a ditadura do Estado Novo, no século 20, suas obras foram utilizadas para fortalecer o nacionalismo.

A influência de Camões na poesia em língua portuguesa dos últimos dois séculos é onipresente. Há um pouco dele em Almeida Garrett, Cesário, Teófilo Braga Pessanha, Pessoa, Almada Negreiro, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Mário Cesariny, Ruy Belo Ana Hatherly, José Saramago Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Manuel Alegre, Vasco Graça Moura e em Nuno Júdice, só para citar alguns nomes.

Ninguém existe sozinho, nem escreve sozinho. Existimos e escrevemos com outros vivos, mas também com outros mortos, pois mortos e vivos constituem o mesmo pó, uns e outros, como nos lembra padre Antonio Vieira em um dos seus sermões.

Creio que, de certo modo, em Camões há já, em germe, todo o desenvolvimento futuro da poesia portuguesa: a vertente lírica, a narrativa e também, evidentemente, a linha patriótica. É impossível, por exemplo, não pensar nele ao ler em Álvaro de Campos, "Pertenço a um gênero de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho". Ou, nos bancos das escolas, "mastigamos por demasiados séculos as orações dos 'Lusíadas', nessa tortura estruturalista de sujeitos e predicados".

Todos nós vimos demasiadas praças e estátuas batizadas com o seu nome: um Camões elegantemente petrificado com barba e com a coroa de poeta. E onde ficou o poeta do "desconcerto do mundo", que deitou tudo a perder em desamor, o poeta incógnito, vadio, o Camões encurralado no pouco tempo e espaço de uma única vida? Um Camões autêntico, e inteiramente diferente do que tinham feito dele. Um Camões dramático e dividido, subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo.

A revisitação da obra camoniana e do humanismo português encontra hoje um novo espaço interpretativo: uma ampla refração contemporânea, que manifesta o que, do tempo e do pensamento quinhentista, permaneceu na atualidade.

Não se trata de produzir apenas um diálogo entre a contemporaneidade e um passado mais ou menos cristalizado. A obra camoniana mostra, de uma forma muito viva, a sua capacidade de interferência no quotidiano e no presente. Mostra, também, a volatilidade de um passado sistematicamente recriado e adaptado e, por esta via, a própria vulnerabilidade da sua natureza em constante interpelação.

O discurso camoniano da mudança, da transformação, mas sobretudo da afirmação do espírito da modernidade renascentista, representa um exercício de pensamento em torno da fragmentação do eu, da dispersão compensatória que ele introduziu na sua narrativa épica, e também uma voragem do tempo, onde o passado épico vive no futuro da poesia.

A lírica camoniana opera uma estratégia de desmultiplicação da identidade nacional, da qual resulta uma heteronímia funcional. Um jogo interativo com a tradição, de extrema modernidade.

Camões ultrapassa as fronteiras do mito, da épica e da lírica, para dialogar com a sua própria existência, com as suas aspirações, contradições e fragilidades, criando uma escala de valores éticos de grande atualidade.

Representa uma interrogação crítica sobre o valor das "palavras" como corpo com um sistema nervoso, capaz de organizar a existência e coordenar a relação entre emoção e razão. Camões surpreende pela matéria lírica e épica altamente inovadora e tão inédita, uma vez que sua poesia gera a própria "autopsicografia", dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão táctil e sensorial e uma unidade indissociável entre vida e obra.

Camões nos ensina a brevidade do fulgor da vida, sem que isso represente um imperativo de abdicação ou desistência. Sabe ser singularmente inteiro, e portanto livre, no que a condição humana lhe impôs de miséria ou derrota, mas igualmente, e sobretudo, de sublimação e grandeza. Ele foi apenas isso, melhor dizendo, tudo isso, nos antípodas do "ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo" de Pessoa.

Camões, como poeta do século 16, continua a influenciar pensadores, escritores e artistas. Com suas interrogações sobre o amor, o poder das palavras e a natureza humana, permanece um tesouro da língua portuguesa e um ícone literário cuja obra é um testamento da capacidade lusófona de olhar para além do horizonte, seja ele geográfico ou temporal.

A obra camoniana representa uma geo-poética da nossa própria humanidade, o nosso infinito íntimo.


Luís Vaz de Camões

Nasceu em 1524, em dia e mês desconhecidos. Pouco se sabe também sobre sua vida. Teria recebido na juventude uma sólida formação nos moldes clássicos, dominando latim, literatura e história antigas. Segundo relatos, levou uma vida boêmia e turbulenta. Em razão de um amor frustrado,
autoexilou-se na África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Depois partiu para o Oriente, onde enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e iniciou sua obra mais conhecida, a epopeia "Os Lusíadas", publicada em 1572. Morreu em 10 de junho de 1580, pobre e isolado. Nas décadas seguintes, contudo, consolidou-se como o principal nome da literatura em língua portuguesa.


Algumas edições do poeta no Brasil

Obra Completa
Cerca de R$ 400; 1.032 páginas; ed. Nova Aguilar
Edição de luxo com biografia do escritor, bibliografia, notas interpretativas, análises e dicionário

Os Lusíadas
R$ 98,65;
696 páginas; ed. Nova Fronteira
Traz introdução e notas do poeta Alexei Bueno a respeito de mitologias, nuances históricas e linguísticas deste poema épico

Sonetos de Camões
R$ 48,90; 224 páginas; Ateliê Editorial
Coletânea da lírica camoniana comentada pelos professores Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo

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