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Descrição de chapéu Artes Cênicas

Christiane Jatahy colhe relatos de refugiados para adaptar 'Odisseia' de Homero

Diretora conta em diário processo de filmagens na Grécia e na África do Sul para criar espetáculo 'O Agora que Demora'

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São Paulo

Christiane Jatahy tem seguido os rastros de Homero. Desde o ano passado, a diretora carioca vem fazendo viagens pelo mundo, mesclando a “Odisseia” do poeta grego a relatos de refugiados.

O resultado, gravado em vídeo, fará parte de “O Agora que Demora”, espetáculo que estreia em maio, em São Paulo, coprodução do Sesc com o Teatro Nacional de Bruxelas e outras instituições europeias. Trata-se da segunda parte do projeto “Nossa Odisseia”, que começou em 2018 com “Ítaca” —e, como é de praxe nos trabalhos de Jatahy, mescla teatro e linguagens do cinema.

Desde setembro, a diretora e sua equipe (o cenógrafo e iluminador Thomas Walgrave, o fotógrafo Paulo Camacho e o produtor Henrique Mariano) foram a Líbano, Palestina, Grécia e África do Sul. Em cada local, encontravam refugiados, atores e não atores, filmando ficções adaptadas da “Odisseia” e entrevistas pessoais. 

Jatahy termina as viagens, em março, no Brasil. “Para mim, é como chegar a Ítaca”, diz, em referência à ilha natal de Ulisses, protagonista do épico, que passa dez anos numa travessia de volta a sua terra. 

A pedido da Folha, a diretora gravou diários das últimas viagens, Grécia e África do Sul. 

 

Diário da Grécia (1º a 7/12)

No fim de semana, conheci os dois atores que vão participar do filme. Ramyar Hosainy é um poeta iraniano, rapaz muito inteligente e sensível, que veio do Irã até aqui a pé. Um jovem intelectual que, por ser curdo, teve que lutar pela sua formação. Ele está há um ano e dois meses refugiado em Atenas e já fala grego. Abbas Abdullah é do Iraque, refugiado há o mesmo tempo. Passou um ano numa ilha antes de poder entrar em Atenas. 

Uma das questões do projeto é quebrar a ideia estereotipada que temos dos refugiados. Somos na maioria descendentes de pessoas que precisaram se mover para sobreviver. Isso está no nosso passado e talvez no nosso futuro.

 

Na segunda, fomos perto de um campo, Skaramagas, mas a gente não entrou. Os campos aqui são muito difíceis de se ter acesso, você precisa ter permissão, são murados. Então, acabamos no alto de uma montanha. Em todos os lugares temos uma cena panorâmica da cidade, e dessa montanha conseguíamos ver o campo. É um campo no porto, e os contêineres onde as pessoas moram estão ao lado dos contêineres de carga que chegam do mar. Filmamos com Ramyar e Abbas a primeira parte do roteiro, em que eles se apresentam como Ulisses e misturam a história de Homero com a deles.

 

O segundo dia de filmagem foi bem diferente. Conseguimos entrar num campo, Ritsona, é lá que o Abbas mora. É perto de uma pequena floresta, é bonito e triste, também murado, e as pessoas moram em contêineres muito pequenos. 

Tem muita gente, muita criança, como nos outros campos. São pessoas mesmo no “Agora que Demora”, estão no eterno provisório, sem poder voltar de onde vieram, sem permissão para estar aqui. 

Filmamos dois rapazes africanos e uma senhora síria. O rapaz do Congo está aqui há quatro ou cinco meses, mas ficou um ano na ilha de Lesbos, num campo horrível chamado Moria, que ele descreve como o lugar da morte. Todos passaram pela tragédia de vir pelo mar. E continuam enfrentando dificuldades, como a questão de trabalho. Sobre as crianças, segundo me contaram, aqui pelo menos elas estudam. São tantas crianças nesses campos. Gerações crescendo sem identidade ou país, uma tristeza... Agora são 2h da manhã, e o dia começou às 9h. É isso, acho que vou dormir.

 

Quarta-feira. Filmamos numa pedreira com um buraco no meio, através do qual dá para ver o mar. Foi só com os dois atores, Ramyar e Abbas, uma cena que filmamos só na Grécia, porque é sobre o horror de atravessar o mar e mistura realidade e ficção. Tem partes do texto do Homero e histórias dos atores. Foi muito tocante como eles foram se abrindo. Ramyar ficou muito mexido, e a gente começou um diálogo inesperado entre mim e ele, que gerou um material muito interessante.

 

Filmamos depois em Mati, uma zona próxima a Atenas que teve um incêndio florestal devastador em julho. Uma parte importante do roteiro é a ida de Ulisses ao Hades (onde estão os mortos), então decidimos filmar depoimentos nessa área queimada. É um lugar com muitas casas abandonadas, desolador. A memória tão recente desse lugar se aproximou da deles, do que aconteceu nos seus países.

Diário da África (9 a 22/12)

Estou aqui no meio da noite, olhando uma vista incrível de Johannesburgo. Este é o último ponto de parada antes de chegarmos “a Ítaca”, ao Brasil. Aqui tem sido uma experiência diferente das outras viagens, por vários motivos. Um deles é que os atores falam uma língua que a gente compreende, o inglês. Hoje a gente filmou uma cena ficcional, que fazemos em todos os lugares. Uma atriz e dois atores de Zimbábue e um de Maláui. Todos Ulisses, sem diferença de gênero, fazendo travessias da ficção e para a realidade.

 

Já filmamos muita coisa aqui e tem sido mesmo interessante, muito próximo do Brasil e ao mesmo tempo tão África, é um longe perto. 

 

Hoje a filmagem foi com crianças num parque, o Albert’s Farm. Uma menina novinha, de dez anos, vai ser presença importante no filme. Mbali é do Zimbábue e tem uma história com o pai, que ela nunca viu, e isso faz uma relação com Telêmaco (filho de Ulisses que cresce sem ver o pai). 

 

Na sexta (14), fomos à casa de amigos, filmamos uma conversa entre um casal misto, ele é branco e ela é preta, sobre a realidade da África do Sul no passado, durante o apartheid, e os reflexos disso hoje. E foi muito forte, porque ambos têm a mesma idade e viveram o apartheid na infância e na adolescência. No fim do sistema, em 1994, entraram para a mesma faculdade e se conheceram. Estão casados até hoje, têm uma filha linda, mas o passado está marcado neles.

 

Domingo (16), filmamos a “cena da mesa”, uma festa, como nos banquetes gregos. Essa cena fazemos em todos os lugares, em progressão temporal. E aqui foi o oposto do que aconteceu no Líbano. Aqui foi de uma alegria contagiante, enquanto no Líbano, onde filmamos num contexto difícil, uma tristeza e uma melancolia pareceram dominar a festa. Mas, junto com os atores extraordinários, trouxemos isso para a cena. E hoje penso que não poderia ter sido diferente. É impressionante como o acidente leva à criação.

 

Tivemos mais uma semana de filmagem, e nesses dias fizemos mais algumas entrevistas, que chamamos de testemunhos, porque eu faço poucas perguntas, e o mais importante é que as pessoas falem em fluxo. E filmamos uma nova cena com as crianças. O encontro com elas é muito importante, porque elas contam a história de Telêmaco, do filho que tinha alguns meses quando Ulisses partiu, e que um dia sai em busca do pai. É muito forte que esse texto escrito há quase 3.000 anos ainda faça tanto sentido hoje.

 

No último dia, fizemos uma cena sobre a chegada de Ulisses a Ítaca. Foi muito difícil no início, porque as pessoas são refugiados de outros lugares da África, o inglês não é a língua que falam desde crianças. Nessa cena, tinham que falar em inglês, e o texto parecia distante deles. Uma hora eu falei: experimenta falar na sua língua. E tudo mudou. Se por um lado distanciava da nossa compreensão, por outro nos aproximava deles profundamente, pela emoção. E foi assim que a gente fechou a filmagem, com cada um deles voltando às suas origens. 

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