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Famosos querem ser gente comum na quarentena, mas só enfatizam desigualdade

Maitê diz fazer faxina pela primeira vez, Pugliesi vira pipoqueira fitness e Justin Bieber se assusta com fã se masturbando

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São Paulo

Maitê Proença dá dicas para quem, como ela, está faxinando a própria casa pela primeira vez, enquanto aspira o que parece ser o hall de entrada de seu iluminado apartamento. Troque o apoio de perna. Alongue a lombar de dez em dez minutos, mas ainda assim vai doer depois, viu? E não se esqueça dos cantinhos.

“Persevere, não é mole”, escreve a atriz em seu perfil no Instagram, lembrando que há uma vantagem —aprendeu a dar valor a quem faz faxina todo dia como obrigação. A atriz beija a cabeça e acaricia
duas esculturas de felinos. “Oi, meu bebê! Tá boa? Tá boa?”

Enquanto a pandemia se espalha, celebridades tentam mostrar que são gente comum nas redes sociais, mas só reafirmam o contraste entre a abundância delas e a miséria ao redor - Jairo Malta

Noutra casa, esta também no Instagram, a influencer Gabriela Pugliesi, que contraiu o coronavírus no casamento de sua irmã mas já parece boa, se transforma em pipoqueira fitness —avisa diante da câmera que vai ensinar a receita ‘‘que não é bem uma receita’’. Antes de pôr o milho, cubra o fundo da panela com azeite, depois ligue o... Espera, essa parte aqui de cima é o forno ou o fogão?

A casa do famoso é um personagem à parte na cultura da celebridade, como mostra, por exemplo, o sucesso do reality show “Keeping Up With the Kardashians”. Quando havia muitas revistas de fofoca no Brasil, os ensaios fotográficos ofereciam acesso controlado à vida excepcional deles —nas entrelinhas, uma promessa do que se pode conquistar se você for talentoso e esforçado.

Agora, enquanto uma pandemia corre a passos largos, as janelas e varandas se transformam em espaço de socialização —seja com cantoria, como na Itália, ou com ruidosos panelaços, como no Brasil.

Dessa forma, os famosos convocam o público a transformar as telas de seus celulares em janelas abertas para a casa deles. Só que, ao contrário das imagens de revista, a intenção aqui não é mostrar como são especiais —e sim dizer que são gente normal, trancados em casa como todo mundo. Querem oferecer ao público o antiglamour.

O efeito, naturalmente, é o oposto. Numa crise de saúde, as celebridades não poderiam parecer mais diferentes do resto dos brasileiros. Aqui fora, trabalhadores informais esperam o auxílio emergencial de R$ 600 do governo, e a economia derrete a olhos vistos.

Nos Estados Unidos, fãs, ou ex-fãs, começaram a fazer circular a hashtag #guilhotina2020. No jornal The New York Times, a crítica cultural Amanda Hess escreveu que, em tempos de pandemia, “Parasita”, que rendeu o Oscar de melhor filme ao diretor sul-coreano Bong Joon-ho, se transforma em uma resposta ao que ocorre nas redes sociais.

Aqui, mesmo em meio à cultura de bajulação que domina os perfis dos famosos, surgem alguns indignados. No perfil de Maitê, uma usuária protestou. ‘‘Sério que, em 62 anos, você nunca usou um aspirador de pó e acha tão incrível que vale o post?” A atriz falou que estava brincando e, irritada, disse à seguidora que é sempre tempo para desenvolver o humor.

Os vídeos e fotos que os famosos fazem se revestem com um verniz de caridade. Enquanto todos roem as unhas em casa, ansiosos quanto ao futuro, eles se oferecem para entreter o público mesmo com o cancelamento de filmes, novelas, lançamentos.

Mas é bom lembrar que, para o famoso, a influência nas redes é um ativo que pode gerar lucro. Quando mostram o dia a dia em quarentena, na verdade estão trabalhando —eles estão entre os poucos profissionais autônomos que ainda podem fazer isso.

Enquanto chocolates de Páscoa encalham nas prateleiras dos supermercados —na véspera de uma Páscoa que promete tudo menos ressurreição—, o ator Caio Castro mostra a mesa cheia de ovos que recebeu de uma marca.

“Em tempos e crise, as celebridades são com quem mais contamos, são elas que vão nos guiar”, diz o ator canadense Ryan Reynolds, em vídeo no seu Twitter, imediatamente se dando conta do ridículo da declaração. “Depois dos profissionais de saúde, é claro. E pessoas trabalhando em serviços essenciais.”

O confinamento começa a aparecer nos produtos culturais. Há dois dias, Drake lançou o clipe de “Toosie Slide”, no qual mostra primeiro as ruas vazias de Toronto —depois, surge de máscara dançando sobre o chão de mármore de sua suntuosa mansão, que parece um shopping center.

Na sala, um retrato de Mao-Tsé Tung feito por Andy Warhol —o artista que explorou o lado perverso da cultura de celebridade, sendo ele próprio expoente e vítima dela a um só tempo—, ganha ares de ironia.

A ostentação, onipresente na cultura pop contemporânea, ganha um ar de insensibilidade. E não precisa do combo cordão, carrão, casarão e mulherão. Enquanto as histórias de fome começam a se espalhar, é estranho até ver Adriane Galisteu comentando, em seu canal no YouTube, um de seus conflitos na quarentena.

“Acabo de comer e já fico pensando no que vou comer daqui a pouco. Nunca tive tanta vontade de comer coisas. Até o que eu não gosto. Estou almoçando e pensando no que vou comer no fim da tarde”, diz ela.

O contraste entre abundância e miséria fez o padre-celebridade Fábio de Melo, próximo de famosos, ensaiar até um pito no pessoal.

“Não acredito que seja a hora de exibirmos os confortos de que desfrutamos na quarentena”, escreveu em seu Instagram. “Há pessoas enclausuradas em espaços exíguos, desprovidas de conforto e dignidade. O nosso exibicionismo pode ser afronta a quem tão pouco tem.”

Dias depois, o sacerdote brincou que era para seus seguidores postarem fotos antigas —porque ninguém
aguenta mais ver imagens de treino improvisado e macarrão com salsicha, brincou.

É raro que o mundo das celebridades seja invadido pela realidade do lado de fora. Mas acontece. O cantor Justin Bieber, que tem convidado seguidores para falar com ele em lives, levou um susto com uma das fãs —enquanto ele falava, a garota se deitou na cama e parecia se masturbar.

Nenhuma crise global é uma crise global sem famosos entoando juntos cantilenas sentimentais. Lá fora, foi a já proverbial “Imagine” —na qual os famosos parecem mais estar apanhando do que cantando.

Aqui, as celebridades escolheram “Trem-Bala”, de Ana Vilela. A canção inspiracional, que no original já era uma xaropada, tenta lembrar, caso ninguém tenha notado, que a vida é passageira —e ela “não é sobre” tudo que o dinheiro é capaz de comprar, diz a letra com um anglicismo, por isso devemos abraçar nossos pais enquanto ainda estão aqui. A vida é trem-bala, parceiro.​

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