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Nelson Rodrigues retrata o Brasil que trinca os dentes contra a volúpia

'Asfalto Selvagem' desperta riso nervoso até mesmo no leitor de 2021 ao escancarar um país de falsos moralistas

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São Paulo

Publicado como folhetim em 1959 e 1960 no jornal carioca Última Hora, “Asfalto Selvagem”, ainda que obra de ficção, não fica distante do noticiário. Muitos dos temas e personagens de Nelson Rodrigues ali, como em suas peças de teatro, são reconhecíveis em nosso dia a dia. O pior: até hoje.

O romance passou à memória coletiva como a história de Engraçadinha, como diz seu subtítulo, de seus amores e seus pecados. Mas há muito mais. Em outros personagens, centrais ou coadjuvantes, é possível ver um retrato do Brasil urbano, do asfalto.

Estão no livro a violência policial, a homofobia e a tentação autoritária —“o Brasil precisa de um Hitler”, pensa sempre um deputado. Está também o juiz que dá carteirada —“o senhor está falando com uma autoridade”, diz ele— para não pagar um táxi ou para ter lugar garantido no cinema cheio —à época, não se exigia máscara. É uma surra de Brasil.

Para os que acham que o politicamente correto dos últimos anos deixou o mundo mais chato e para os que acreditam que mudar o nome com o qual chamamos as coisas promoverá rapidamente uma mudança das próprias coisas, fica uma espécie de lição. Não há um país mais livre e menos reprimido para o qual voltar. Seja no fim dos anos 1930, quando a história de Nelson começa, no despertar dos anos 1960, quando se passa sua segunda parte, ou em 2021, o Brasil é um país que trinca os dentes contra a volúpia e outros prazeres.

Sempre houve forças que impedem as pessoas de se expressarem como bem queiram. Para fazer bonito aos vizinhos, a Deus, ao padre ou ao grupo de mesma ideologia, aceita-se viver uma vida de aparências que esconde atos ou pensamentos não tolerados. Nelson, porém, entra nas casas, nos quartos e na cabeça de seus personagens, desatando, mesmo no leitor do século 21, um riso nervoso ao escancarar uma sociedade de falsos moralistas.

Como não sentir um leve desespero lendo as conversas e pensamentos de desprezo ao casamento, sobre como ele é tedioso, e a infidelidade, inevitável, e se lembrar de camisetas que fizeram moda por aqui com o desenho de um casal no altar e a expressão “game over” (fim de jogo)? Mas todos caminhamos rumo ao casamento, porque é isso que se espera de nós.

A atriz Alessandra Negrini como Engraçadinha, na primeira fase da série da Globo, de 1995, baseada no romance 'Asfalto Selvagem' - Divulgação

Sob o olhar e o julgamento do outro —e como julgam!— o pudor deve ser extremo, o homem não deve usar regata do Flamengo deixando à vista as axilas peludas, e a menina de família não deve mascar chiclete e nem sentar com os joelhos separados.

É claro que é sobre elas, meninas e mulheres, que recaem com mais força e em maior número as exigências das aparências. As mulheres são apenas de dois tipos, a honesta e a prostituta. A velha divisão entre a mãe, casta, elevada, e a puta permeia todo o romance de Nelson Rodrigues. E a virgindade, como não podia deixar de ser, ocupa um lugar de destaque entre as imposições, a ponto de haver, na história, um médico que “faz virgens” cirurgicamente. Basta uma rápida busca na internet para ver que reconstruções de hímen e testes de virgindade seguem firme e forte.

Ilustração para a nova edição de "Asfalto Selvagem", de Nelson Rodrigues, feita pela designer e ilustradora Giovanna Cianelli - Giovanna Cianelli/Divulgação

Os dois grandes conflitos do livro são fruto de tentativas frustradas de se encaixar no mundo das aparências –a tragédia de Sílvio, um quase Édipo, e o drama lésbico de Letícia. Ao descobrir ser irmão, e não primo, de Engraçadinha, por quem tem paixão e ódio por ela ter dado vazão a seu desejo sexual com ele, Sílvio não se cega, mas decepa o pênis. Consciente da impossibilidade de uma relação amorosa com Engraçadinha e consumida pela rejeição da prima e amiga de infância, Letícia dá cabo da vida.

Já nas últimas páginas do livro, há um diálogo que faz as vezes de fim de parábola. Nele, um membro do Itamaraty e Abdias do Nascimento, um dos muitos personagens reais que Nelson mobiliza na trama, conversam sobre a ausência do sexo nos romances de sua época. Segundo a fala, nunca o brasileiro foi tão obsceno. Quem dera.

Asfalto Selvagem: Engraçadinha, seus Amores e seus Pecados

Avaliação:
  • Preço: R$ 59,90 (512 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria: Nelson Rodrigues
  • Editora: HarperCollins

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