Filme mostra um Flávio Migliaccio que ia do drama às estripulias
É tocante o paradoxo entre a depressão do ator escancarada nos noticiários e sua placidez no documentário
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A lembrança que o país guarda da triste partida de Flávio Migliaccio, que, deprimido, se suicidou em maio do ano passado, aos 85 anos, torna ainda mais comovente o filme “Migliaccio – Um Brasileiro em Cena”.
O projeto inicial do documentário era celebrar os 80 anos do ator, diretor e dramaturgo, marcado pela atuação em diversos papéis populares. Por exemplo, o de Xerife na série “Shazan, Xerife e Cia”, exibida pela Globo nos anos 1970, e o do personagem-título do filme infantil “As Aventuras do Tio Maneco”, de 1971, dirigido pelo próprio Migliaccio e que depois ganhou uma série homônima nos anos 1980.
O documentário mescla cenas da carreira de Migliaccio, que atuou na Globo de 1972 até 2019, ao seu depoimento. Não aborda a depressão enfrentada pelo ator —aos 80, ele parecia bem. Relembra passagens da carreira e reflete sobre seu ofício. “Gosto de criar lugares, acontecimentos, pessoas. Gosto de ser um pouco Deus.”
Fala da vida pessoal, da infância pobre na Vila Mazzei, na zona norte de São Paulo, da numerosa família com 16 irmãos. O filme passa pelo seu trauma de ter sido assediado por padres em um colégio interno. Foi quando voltou para casa, conta, se perguntando “cadê Deus, que não está me ajudando?”. Encontrou Deus na natureza, ele relata em meio ao verde de seu sítio na cidade de Rio Bonito.
Migliaccio fala da morte. “É uma contradição incrível uma pessoa de 80 anos sem medo de morrer”, afirma ele, que complementa “e sem acreditar em Deus". "Tem que ter muita coragem e eu tenho essa coragem. A morte é inevitável.”
É tocante o paradoxo entre a depressão do ator escancarada nos noticiários do ano passado e a placidez com que ele se apresenta no documentário.
As tantas cenas de Migliaccio em filmes, peças, novelas e programas de humor desvelam a versatilidade com que ia do drama às estripulias, fazendo o público chorar e rir, e por vezes chorar de rir. É assim também que Migliaccio fala de sua vida no filme, ora fazendo piada, ora chegando às lágrimas. E ele humildemente se define como “um ator amador até hoje”.
Sua transparência é engraçada e emociona. “Nunca escolhi papel, fiz até minhoca, mas como se fosse Hamlet”, diz. “Fiz muita porcaria, muita pornochanchada”, afirma, enquanto surge uma cena de Migliaccio sendo beijado por uma mulher nua. Era preciso sobreviver quando a ditadura militar aniquilou os teatros de esquerda.
Foi no Teatro de Arena, com peças como “Chapetuba Futebol Clube”, de Oduvaldo Vianna Filho, e “Eles Não Usam Black Tie”, de Giafrancesco Guarnieri, que descobriu o teatro profissional e muito mais. “O Arena me ensinou a analisar a realidade, os costumes da minha terra. Depois do Arena não faço esforço para representar esse tipo de brasileiro.”
Ele reflete sobre o engajamento político da arte, mas admite sua necessidade de “viver fora da realidade”. “Gosto de não saber se essa realidade terrível é ficção ou não, porque estamos vivendo uma época muito brava”, diz.
“Sei que isso é triste, porque o objetivo do ser humano é melhorar a realidade, mas cansei um pouco, então deixa eu ficar um pouco na ficção, esquecer um pouco essas coisas.”
Ao final dos créditos do documentário, uma informação –os produtores não puderam ter acesso ao filme “Os Mendigos”, de 1963, no qual Migliaccio estreou como roteirista e diretor e que para ele “é de grande importância”. “A única cópia se encontra fechada na Cinemateca Brasileira, onde não conseguimos contato”. Essa é a realidade.
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