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Descrição de chapéu Cinema festival de cannes

Homenageado em Cannes, Marco Bellocchio revisita suicídio de seu irmão gêmeo

Documentário do vencedor da Palma de Ouro honorária deste ano mostra que chaga da morte não cicatrizou

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Rio de Janeiro

O italiano Marco Bellocchio já deve ter perdido a conta de quantas vezes teve filmes em disputa nos festivais de Cannes, Veneza e Berlim, os três mais importantes do cinema. Mas certamente se lembra de quantas levou o prêmio principal: nenhuma.

Talvez como forma de compensar o deslize de júris no passado, Cannes resolveu agraciar o cineasta de “De Punhos Cerrados” (1965) e “O Traidor” (2019) com uma Palma de Ouro honorária, pelo conjunto de sua admirável obra. A entrega, que será na noite de encerramento da festa francesa, neste sábado, ocorre dez anos depois de Veneza já ter feito um mea culpa semelhante: em 2011, os italianos deram ao compatriota um Leão de Ouro especial.

Mas, aos 81, Bellocchio segue na ativa – inclusive, está em plena filmagem, que só interrompeu para receber a láurea na Croisette. Aproveita para lançar ali um novo longa, o documentário “Marx Può Aspettare”, ou Marx pode esperar, em que revisita um tema que já esteve presente, de maneiras mais ou menos camufladas, em ficções anteriores: o suicídio de seu irmão gêmeo de 29 anos, Camillo, em 1967.

Em um dos seus mais belos filmes, o melancólico “Olhos na Boca”, de 1983, Bellocchio já havia tratado da questão frontalmente —ali, um homem volta à cidade natal ao saber que seu gêmeo tirou a própria vida. Sente um misto de raiva e culpa, por não ter percebido sua tristeza e, talvez, por ter dessa forma contribuído para sua morte.

No documentário exibido em Cannes, vemos um Bellocchio que já processou melhor o fim trágico do irmão, após mais de 50 anos de seu enforcamento. Mas há ainda ali uma chaga nunca completamente cicatrizada, e a simples existência do filme é prova incontestável disso.

Gêmeos não idênticos, Marco e Camillo eram também um bocado diferentes em seu modo de ser. No filme, descobrimos que o futuro cineasta sempre foi um rapaz de inteligência acima da média. Também tinha predisposição ao engajamento político e talento artístico inegável.

Já o irmão nunca tirava notas altas e passou a vida toda sem nem sequer saber que profissão queria ter. Também não possuía nenhum dom especial e nem alguma coisa que lhe despertasse uma paixão verdadeiramente intensa, a ponto de a ela dedicar sua vida.

Em outras palavras: Camillo era um homem mediano em tudo —talvez medíocre. E, dentro do lar dos Bellocchio, isso era um problema sério: parte da ninhada era de rebentos brilhantes, dignos de orgulho, enquanto outra parcela era formada por filhos com problemas de saúde, que exigiam cuidados. Entre os dois extremos, estava Camillo, que acabava meio esquecido pela matriarca, dividida entre a admiração pelos geniozinhos da casa e o zelo pelos mais frágeis.

Uma das teorias do filme diz que parte da tristeza de Camillo vinha daí. É verdade que uma das fraquezas do cinema de Bellocchio, sobretudo a partir dos anos 1980, é a tendência dos roteiros a buscarem explicações psíquicas muito literais para situações mentais bem mais complexas —ao contrário de suas imagens, que sempre se destacaram justamente pela exuberância de ambiguidades, que o cineasta jamais buscou cercear.

Mas em “Marx”, esse tipo de exercício de decifração da mente de Camillo tende a ser positivo, porque convida o espectador a refletir não só sobre a personalidade do rapaz mas também os discursos sobre ele.

É um filme arriscado, com Bellocchio se colocando em uma posição ingrata: na do irmão bem-sucedido que se põe a falar do gêmeo cujo embrião trazia um DNA menos propenso ao sucesso que o dele próprio (ao menos na Itália de meados do século 20). Poderia cair em um discurso muito cheio de falsa modéstia, ou então em uma visão arrogante de superioridade. Ou em um excessivo autopunitivismo.

Mas o cineasta consegue evitar essas armadilhas. Em grande parte, aliás, porque o filme, apesar de melodramático em essência, busca sempre um estado de leveza, até de comicidade —quando incitados pelo cineasta, os irmãos ainda vivos de Bellocchio revelam-se ótimos contadores de história. Para uma obra que fala sobre suicídio, é um filme peculiarmente agradável.

No começo do documentário, o diretor diz: “Camillo, o anjo, é o protagonista deste filme”. Mas, ironia das ironias, a personalidade expressiva de Marco aos poucos acaba se sobrepondo à de Camillo, por vezes involuntariamente.

Mais uma vez ele fica à sombra do irmão: o filme passa a ser sobre Marco Bellocchio, acima de tudo. E sobre o quanto o trauma da perda do gêmeo e a peculiar dinâmica de sua família formataram sua vida e obra.

Compreendemos melhor algumas das fixações da filmografia do italiano: as relações familiares sufocantes, personagens à beira da loucura, as pulsões de morte —tanto as suicidas quanto as assassinas.

E é ainda um filme igualmente valoroso por uma série de questões colaterais que suscita, como a própria noção de muitas vezes valorizarmos nas pessoas certas características que elas já trazem naturalmente —como as demais, que não tiveram a mesma sorte, poderiam competir em posição de igualdade com as vitoriosas na loteria genética?

Se estivesse na competição por prêmios, “Marx Può Aspettare” não ganharia a Palma —é um documentário relativamente banal, baseando-se em depoimentos. Mas há ali, mesmo nesse filme aparentemente simples e pessoal, uma vitalidade e uma inteligência cinematográfica que mostram que Bellocchio ainda está longe de depender de prêmios honorários para manter a estante adornada.

Ainda é claramente capaz de ganhar uma Palma, Leão ou Urso de Ouro sem a benevolência dos presidentes de festivais. Muito embora, e em “Marx” isso fica claro mais uma vez, a honraria de Cannes seja mais do que merecida.

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