Livro de Yara Monteiro investiga perdas que se dão no fluxo migratório
Em 'Essa Dama Bate Bué!', angolana retrata Luanda como cidade cheia de contrastes e metáforas visuais instantâneas
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A capacidade de um texto se instalar na cultura e lançar seus tentáculos por variados aspectos do imaginário das sociedades costuma ser inversamente proporcional à sua potência criativa. Quanto mais representatividade uma obra artística reivindica para si mais rápida é sua circulação e, portanto, mais propícia à dissolução pelo excesso ela se torna.
A vontade desesperada que temos de que uma obra fale sobre nós pode impedir que ela fale de si. É contra esse princípio corrosivo que se levanta "Essa Dama Bate Bué!", primeiro romance da angolana Yara Monteiro, publicado em Portugal em 2018 e que chega ao Brasil agora, pela Todavia.
O enredo traz Vitória, uma jovem negra, que sai por aí em busca de sua mãe, Rosa Chitula, ex-combatente da luta armada, cuja figura chega até nós como uma espécie de Godot maternal, feita de silêncio e esperança, representando dolorosamente uma força semiótica radical, que cultivamos dentro de nós quando não podemos ter acesso ao que gostaríamos que estivesse lá.
Em Luanda, palco fundamental da obra, a protagonista encontra uma cidade cheia de contrastes, riscos e metáforas visuais instantâneas. "Essa Dama Bate Bué!" é, claro, uma espécie de homenagem à contribuição da luta feminina na construção da independência angolana, mas é bem mais que isso –é uma corajosa investigação sobre o quanto de nós mesmos perdemos no curso das migrações.
Ao nos afastarmos das más condições de nossas origens —sejam elas quais forem— nos afastamos também de nossas origens. Quando se nasce num lugar difícil, o berço e o inferno se confundem e nossa memória do útero coincide, em aspecto, com a do cheiro do lixo.
Embora os autores africanos não possam ser vistos como uma massa homogênea, já que possuem projetos estéticos bem distintos entre si, ler esses escritores traz ao leitor brasileiro médio um tipo de discussão ao qual raramente se tem acesso por essas bandas.
A perspectiva racial da qual parte Monteiro não encontra similitude na produção literária contemporânea do Brasil, que, enredada em outras guerras particulares, parece fascinada em celebrar a tardia valorização dos extensos relatos do que foi feito a nós, negros, em vez de investir nas perguntas que realmente interessam –"quem fez" e "por qual razão".
Em seu momento de maior potência analítica, a narradora exibe com clareza a necessidade de equilibrar os efeitos narrativos com a agudez filosófica de quem sabe fazer diagnósticos precisos. "Luanda ainda não acordou. Recolheu-se no sossego. É um animal exausto que decidiu prorrogar o seu despertar. Todos têm direito à cidade, mas massacram-na com a sobrecarga de tantos corpos. De segunda a sábado, os bairros das elites e os musseques levam os seus excessos ao centro histórico. Luanda já pouco aguenta."
Esse volume antropofagiza, com astúcia, acertos presentes em produções literárias de antecessores de Monteiro. Há ali pitadas de Paul Auster e Toni Morrison, numa apropriação eficiente do espólio das palavras.
A narrativa é elegante e delicada, e os acontecimentos são explorados em toda sua potência criativa, por mais duros que sejam. O resultado é um romance que mistura competência descritiva com elucubrações filosóficas carregadas de ironia e rigor.
Certa vez perguntei ao escritor angolano Kalaf Epalanga se ele teria um conselho a dar a nós, brasileiros. Ele pensou um pouco e disse, com a delicadeza de quem se dirige a uma criança querida, "conselho não, mas eu daria em vocês um abraço". E acrescentou "porque seus colonizadores ainda vivem por aqui".
Quando o encontrar novamente, poderei responder à altura, parafraseando um dos personagens de "Essa Dama Bate Bué!", na ironia que só o desespero é capaz de ofertar. Os brasileiros são um pouco racistas, é verdade, mas são boa gente.
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