'Dilúvio das Almas', do monge Tito Leite, vê o real sem condenações
Ficção com narrador que trilha percurso violento, mesmo com excessos, mostra que 'não há nada de divino no horror'
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Escrita por um monge beneditino, a novela "Dilúvio das Almas" tem título recortado do léxico da Bíblia: a imagem quase apocalíptica de um mar de almas em busca da redenção pela fé, Noé em missão de salvação.
Ainda na capa há outro jogo narrativo intrigante —Tito Leite, que assina o livro, é o nome religioso de Cícero Leilton. Ele escolheu seu novo nome em homenagem ao frade dominicano frei Tito de Alencar Lima, também cearense, que tirou a própria vida por não suportar mais o sofrimento após as torturas sofridas nos porões da ditadura militar. Antes disso diziam que sua gargalhada era a mais sonora de todos os lugares por onde andou.
Quem escreve o romance nunca é a pessoa que o assina, mas a voz por ela construída. Não é Cícero Leilton nem Tito Leite que nos conta nada, mas um narrador seguro que toma o leitor pelo braço, anda por São Paulo, expõe as feridas do preconceito, do submundo, chega à terra natal e nos deixa ver tudo sem piedade ou concessão. O monge cala para que o homem ficcional possa dizer o que é necessário, para fazer o que o monge não pode.
O caminho mais profícuo para uma apreciação crítica desta obra é observar a narração. A definição do literário estará sempre muito mais no modo de narrar do que no tema. Na construção do personagem, que se deixa conhecer pela forma como reconta e recria a realidade. Amargurado, destemido, crítico. Da sua boca nascem frases marcantes, do começo ao fim. Acontece isso quando a prosa é escrita por um poeta —Tito Leite é também autor dos livros de poesia "Digitais do Caos" e "Aurora de Cedro".
Leonardo vive a partir das próprias decisões, dono dos seus passos. As pessoas morrem perto dele, odeiam, executam vinganças, amam e devoram seus corpos nos campos improvisados de uma cidade sem motel. As mulheres, sobretudo, são seres que desejam e oferecem aos homens o céu possível, o sexo, "uma mágica que acontece sem revelar seus truques".
Há momentos de excesso no uso da primeira pessoa quando o narrador explica demais. Quando cita demais, o que vez ou outra pode parecer uma erudição forçada. Quando fala muito sobre o que pensa a respeito dos fatos. Às vezes sobra, sobretudo porque a escolha do autor foi pela narração simultânea.
Os passos de Leonardo combinam com o percurso do narrador da canção "Se Eu Quiser Falar com Deus", de Gilberto Gil —ficar a sós, apagar a luz, calar a voz, encontrar a paz (para perder a seguir), ter mãos vazias, caminhar decidido pela estrada que ao final vai dar em nada. O filho que volta, tal qual o tema da "Lavoura Arcaica" de Raduan Nassar.
O livro do monge poeta investiga a alma humana seguindo os seus rastros reais e sem idealização de pureza ou condenação de pecados. O ódio, o desejo, o vício, o medo estão lá, no comando. "Não há nada de divino no horror", ele diz, nas palavras finais do livro. Leonardo encontra o que procurava, da forma que nunca poderíamos esperar. Ao levar o leitor com ele, até o fim, solta sua mão no silêncio ensurdecedor de uma pergunta: o que é estar em casa?
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