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'Escravidão na Poesia Brasileira' esquece obra literária da mulher negra

Antologia de poemas que tematizam processo histórico ainda vilipendia trajetória de Maria Firmina dos Reis

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Fernanda Miranda

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal da Bahia e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

A escravidão na poesia brasileira - Do século 17 ao 21

  • Preço R$ 89,90 (714 págs.)
  • Editora Record
  • Organização Alexei Bueno

A capa de "A Escravidão na Poesia Brasileira - Do século 17 ao 21" espelha a obra "Ferramentas de Castigo", pertencente à série "Obra Divina Não se Quebra à toa", do artista, negro, Rafael Cruz. A esta série também pertencem "Ferramenta de Obstáculo" e "Ferramenta de Ameaça", nomes associados a tecnologias de um sistema que ainda organiza a sociedade brasileira, sua memória e sua ideia de futuro, a escravização negra.

Em nossa literatura nacional, ferramentas poderosas têm sido desenvolvidas e aplicadas ao longo dos séculos. Um nome muito simples as descreve, silenciamento –aquela tecnologia de fabricar esquecimentos. Sua subversão, "exúnica" por natureza, é a espiral do tempo na memória –uma epistemologia da teima em não esquecer.

É nesse lugar que a antologia se localiza, ao trazer para o centro um tema que permeia a poesia brasileira de ponta a ponta, mas que se mantinha à margem do sensível e dos arquivos da historiografia e da crítica.

Imagem da obra vencedora de um concurso realizado pela Flup (Festa Literária das Periferias) para recriar o rosto da autora, feita pelo artista é o João Gabriel dos Santos Araújo
Ilustração que busca recriar o rosto da escritora Maria Firmina dos Reis, feita pelo artista João Gabriel dos Santos Araújo em concurso da Flup - Reprodução

Organizado por Alexei Bueno, o livro reúne cerca de 80 autores e mais de 200 poemas, dispostos cronologicamente e divididos em torno de alguns temas, como o exílio forçado, a profanação da mulher, as revoltas e fugas, Palmares, Zumbi e outras figuras míticas, reações às leis, entre outros.

Há autores pouco lembrados, como Cassiano Ricardo, Melo Morais Filho, Catulo da Paixão Cearense e Paulino de Brito; autores conhecidos, porém pouco visitados no âmbito do mote da antologia, como Oswald de Andrade, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos; e alguns —poucos— autores negros em suas poéticas variadas, como Luiz Gama, Cruz e Sousa, Solano Trindade, Carlos de Assumpção, Edimilson de Almeida Pereira e Henrique Marques Samyn.

Lamentavelmente, há pouquíssimas autoras presentes na obra. Entre os 60 autores que compõem o livro, só cinco são mulheres e, destas, só uma é negra. Maria Firmina dos Reis, Narcisa Amália, Emília de Freitas, Francisca Júlia e Cecília Meireles representam a autoria feminina na antologia.

Não houve, portanto, diálogo com o tempo presente –marcado pela presença autoral de mulheres que têm existido em voz alta neste território textual que silencia dissonâncias da autoria hegemônica, e que também se inscrevem no tema do livro. Tampouco parece ter sido feita pesquisa mais apurada acerca de poetas soterradas pelos regimes de comunicabilidade e transmissão que articulam o cânone.

Contudo, o problema mais grave no âmbito da autoria feminina incide sobre a memória da única autora negra presente na obra, uma autora já muito vilipendiada pelo silenciamento sistêmico que forja os limites do que se entende por literatura brasileira. Há apenas uma curtíssima nota biográfica que o autor dedica a Maria Firmina dos Reis, na qual se lê "faleceu cega, aos 95 anos, na cidade maranhense de Guimarães, na casa de uma sua ex-escrava".

O pronome possessivo aqui performa uma ficção que sequestra a pessoa, vilipendia sua trajetória e igualmente ignora a produção crítica de pesquisadores e pesquisadoras empenhados em construir pontes mais seguras para o encontro com essa escritora pioneira do abolicionismo brasileiro, silenciada durante todo o século 20.

Desde a pesquisa fundamental de Nascimento Moraes Filho, estudos já mostram que Maria Firmina dos Reis jamais aceitou a escravidão. Pelo contrário, lutou contra ela com coragem, inteligência e altivez.

Maria Amélia, a ex-escravizada e ex-aluna que abrigou Maria Firmina dos Reis em sua velhice, foi, inclusive, alforriada graças aos seus esforços, conforme mostra a biografia recente escrita por Agenor Gomes.

Excetuando essa ferramenta de castigo, o livro é um capítulo importante da historiografia literária brasileira, posto que visibiliza, na poesia, a presença constante da experiência que nos produz enquanto sociedade a escravização de pessoas negras e a permanência dos senhores.

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