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'Fooquedeu' de Nuno Ramos vai do risco na arte às ruínas do Brasil

Textos breves pensam sobre o Jornal Nacional, a ascensão do fascismo no país e refletem admiração por Mira Schendel

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Laura Erber

Escritora e professora do Leiden University College (Holanda). Autora de "Os Corpos e os Dias" e "A Retornada"

Fooquedeu

Avaliação:
  • Preço: R$ 69,90 (208 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autor: Nuno Ramos
  • Editora: Todavia

Tradicionalmente, a divisão do trabalho no sistema da arte definia os artistas como aqueles que produziam obras, enquanto aos críticos caberia selecionar as palavras com que as envolver, socorrer ou atacar.

Já não vivemos esse tempo, que era também o tempo em que apenas os curadores deveriam se dedicar à seleção e exibição das obras de arte. Como constatou Boris Groys, não há mais diferença fundamental entre quem faz arte, quem define seus modos de exibição e quem seleciona as palavras com que as dizer.

Obra da série 'Objetos Gráficos' realizada em 1967 pela artista Mira Schendel - Reprodução

O artista e escritor Nuno Ramos se insere nessa paisagem, fazendo também da literatura uma arte de revelar aquilo que, de uma obra, não se vê quando em exposição. Não que Nuno Ramos tente nos conduzir sorrateiramente para a coxia de seus processos, a menos que seja para o que outro artista e escritor, Henri Michaux, batizou de "ateliê do cérebro", onde ideias afloram, rodopiam e podem bater em retirada.

Na toada de mostrar o que não se exibe, "Fooquedeu", de Nuno Ramos, publicado há pouco pela Todavia, nos leva a percorrer as torções de seu pensamento mutante. Há uma sensação cativante de nos sentirmos levados por um texto que se constrói enquanto o lemos.

Uma das linhas de força do livro são reflexões sobre o fazer criativo, o seu próprio mas também a criação como desafio à análise descritiva, os seus aliados substanciais, as influências declaradas e as nem tão fáceis de assumir.

Toma o partido das coisas, se arrisca numa simpática teoria da obra ruim —para ele, a que não consegue se descolar do artista e "permanece pousada no ombro do seu autor". O título do volume remete à dupla admiração do autor pela artista Mira Schendel. Dupla porque admira sua obra e sua modéstia em relação a ela, sintetizada na frase que diz pouco antes de morrer e que Ramos usa como base para "fooquedeu".

Mas o diário de bordo da preparação de uma exposição se torna um experimento mais abrangente, pondo em questão a autoria complexa de uma obra e o valor do risco na arte contemporânea. Embora possa ser lido como um escrito de artista, o livro se insere na linha de certa literatura que incorpora o impulso ensaístico e tende ao inclassificável, como ocorre em César Aira, Anne Carson, Sergio Chejfec, ou mesmo nas propostas fantásticas de Italo Calvino.

A brevidade dos textos não deve ser encarada como forma curta, mas como massa compacta. E, embora densa, essa massa de ideias não deixa de flertar com o inacabado e o infinito. O livro acolhe os mais diversos temas e interesses, deslizamentos fonéticos e homofonias ricas de sentido, antipatias e implicâncias, virtudes do sono, pedacinhos de canções, a concepção da morte entre os azande, Machado contra Euclides, um passeio por filmes brasileiros recentes.

Da frase reflexiva ao jato de palavras, mesmo os textos que abordam a violência do real de nossa época mantêm o pacto com um tipo de prazer que só a literatura pode produzir.

O livro, para Nuno Ramos, parece ser uma oportunidade de abraçar o paradoxo que enuncia em um dos textos sobre o ethos do artista contemporâneo –o de querer controlar o risco de erro e ao mesmo tempo buscar situações cada vez mais arriscadas, em que a chance de controle eficaz diminui conforme aumentam as chances de um erro que dá certo.

Lateja o tempo todo a fascistização do Brasil e a neoliberalização grotesca, que monetiza todas as esferas da vida. São vários os textos dedicados a pensar aquilo que corrói o Brasil —passando inclusive pelo famigerado Jornal Nacional e o espetáculo medonho da votação do impeachment de Dilma— mas também se detém nos pensadores do Brasil.

Ele procura captar representações da brasilidade e da conjuntura que não se valem do contraste e da polarização, apostando na importância de analisar sem abdicar do intrincado do nosso tecido sociocultural dramático.

O belo "Vamos?" talvez sintetize o lugar da criação num mundo em colapso. Nele, Ramos nos atrai para o seu campo de pesquisa e reflexão infinitas, onde quem lê compactua com a voz que invoca um lugar enfeitiçado, talvez órfico, que só se revela ao desaparecer e se dissolve a cada vez que é enunciado.

"Vamos voltar para a casa onde ninguém mais existe", o convite insiste e acende a vontade de não parar de se encaminhar para o lugar aonde nunca se chega, porque não é um onde, é um como, modo de criar possíveis num mundo de asfixiantes impossíveis. Fooquedeu, e não foi pouco. Vamos?

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