Em seu celebrado relato autobiográfico "Quarto de Despejo", a autora Carolina Maria de Jesus escreve que "há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira". "Mas as misérias são reais." Ciente de possíveis acusações em torno da veracidade dos relatos que constam em seu diário, ela reafirma a verdade da sua experiência a partir da escrita.
Em "Vozes Afro-Atlânticas: Autobiografias e Memórias da Escravidão e da Liberdade", do historiador Rafael Domingos Oliveira, aprendemos que esse gesto de defesa é parte de uma longa história de luta por liberdade.
Com sólido rigor metodológico, ele aborda um conjunto heterogêneo de 21 autobiografias de escravizados e libertos produzidas no hemisfério norte, sobretudo nos Estados Unidos, entre 1770 e 1890.
Vistas sob suspeita em um contexto marcado pela brutal inferiorização de pessoas negras, Oliveira demonstra como as narrativas materializaram projetos de liberdade na medida em que contribuíam para a denúncia da escravidão a partir da experiência de quem a viveu na pele.
É o caso de Solomon Northup, que se tornou mundialmente conhecido com o premiado filme "Doze Anos de Escravidão". Nascido livre, foi sequestrado e escravizado aos 33 anos até conseguir a liberdade 12 anos depois.
Em sua autobiografia, publicada em 1853, relata os horrores vividos nesse período, dando vazão não apenas à violência, mas também à vulnerabilidade humana daqueles que eram vistos como meras forças produtivas. Não à toa, Oliveira afirma que essas narrativas são um grande testemunho da dignidade humana.
Alertando os leitores de que "este é um livro de história", Oliveira evidencia como a escrita de Northup é parte de uma tradição autobiográfica afro-atlântica que se desenvolve em paralelo com o abolicionismo, se tornando uma "matriz referencial" que dava materialidade à luta abolicionista a partir de experiências concretas. Não à toa, afirma Harriet Jacobs, ex-escravizada, que "só quem passou por essa experiência pode mostrar o que é esse fosso de abominações, o que há nele de profundo, sombrio e imundo".
Dessa forma, Oliveira nos leva a ouvir vozes afro-atlânticas ainda pouco conhecidas no Brasil, além de trazer gravuras, ilustrações e frontispícios que reforçam o caráter documental dessas obras, ainda mais estudadas no campo da literatura do que da história.
Longe de ser uma escrita de si meramente individual, o autor argumenta que as autobiografias de escravizados são "formas de inscrição na história, pois revelam trajetórias pessoais e coletivas, formas de compreensão da realidade, estratégias de resistência e projetos de liberdade".
De fato, "Vozes Afro-Atlânticas" é um livro de história. Dialogando com outros historiadores e historiadoras e fazendo aproximações com o contexto brasileiro, o autor é parte de uma tradição historiográfica comprometida radicalmente em afirmar a agência dos escravizados, que se torna cada vez mais necessária diante de diferentes formas de negacionismo histórico. No entanto, é inegável que a contribuição de Rafael Domingos Oliveira ultrapassa as fronteiras da historiografia da escravidão.
Com seu rigor teórico e sensibilidade afiada, o autor nos ensina como o conhecimento histórico pode iluminar as leituras que fazemos, reconhecendo uma "escrita de liberdade" —como classifica as autobiografias— num presente em que as misérias ainda são reais e históricas. Num momento em que escritores negros são cada vez mais lidos, aprendemos que não apenas nossos passos, mas também a nossa escrita vem de longe.
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