Descrição de chapéu
Livros

'Vozes Afro-Atlânticas' reúne autobiografias de escravizados americanos

Livro traz 21 relatos que reafirmam luta por liberdade, como o de Solomon Northup, de 'Doze Anos de Escravidão'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fernanda Silva e Sousa

Vozes Afro-Atlânticas: Autobiografias e Memórias da Escravidão e da Liberdade

  • Preço R$ 49,90 (292 págs.)
  • Autor Rafael Domingos Oliveira
  • Editora Elefante

Em seu celebrado relato autobiográfico "Quarto de Despejo", a autora Carolina Maria de Jesus escreve que "há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira". "Mas as misérias são reais." Ciente de possíveis acusações em torno da veracidade dos relatos que constam em seu diário, ela reafirma a verdade da sua experiência a partir da escrita.

Em "Vozes Afro-Atlânticas: Autobiografias e Memórias da Escravidão e da Liberdade", do historiador Rafael Domingos Oliveira, aprendemos que esse gesto de defesa é parte de uma longa história de luta por liberdade.

Com sólido rigor metodológico, ele aborda um conjunto heterogêneo de 21 autobiografias de escravizados e libertos produzidas no hemisfério norte, sobretudo nos Estados Unidos, entre 1770 e 1890.

Vistas sob suspeita em um contexto marcado pela brutal inferiorização de pessoas negras, Oliveira demonstra como as narrativas materializaram projetos de liberdade na medida em que contribuíam para a denúncia da escravidão a partir da experiência de quem a viveu na pele.

É o caso de Solomon Northup, que se tornou mundialmente conhecido com o premiado filme "Doze Anos de Escravidão". Nascido livre, foi sequestrado e escravizado aos 33 anos até conseguir a liberdade 12 anos depois.

Em sua autobiografia, publicada em 1853, relata os horrores vividos nesse período, dando vazão não apenas à violência, mas também à vulnerabilidade humana daqueles que eram vistos como meras forças produtivas. Não à toa, Oliveira afirma que essas narrativas são um grande testemunho da dignidade humana.

Alertando os leitores de que "este é um livro de história", Oliveira evidencia como a escrita de Northup é parte de uma tradição autobiográfica afro-atlântica que se desenvolve em paralelo com o abolicionismo, se tornando uma "matriz referencial" que dava materialidade à luta abolicionista a partir de experiências concretas. Não à toa, afirma Harriet Jacobs, ex-escravizada, que "só quem passou por essa experiência pode mostrar o que é esse fosso de abominações, o que há nele de profundo, sombrio e imundo".

Dessa forma, Oliveira nos leva a ouvir vozes afro-atlânticas ainda pouco conhecidas no Brasil, além de trazer gravuras, ilustrações e frontispícios que reforçam o caráter documental dessas obras, ainda mais estudadas no campo da literatura do que da história.

Longe de ser uma escrita de si meramente individual, o autor argumenta que as autobiografias de escravizados são "formas de inscrição na história, pois revelam trajetórias pessoais e coletivas, formas de compreensão da realidade, estratégias de resistência e projetos de liberdade".

Ilustração de Aline Bispo para capa do livro 'Vozes Afro-Atlânticas'
Ilustração de Aline Bispo para capa do livro 'Vozes Afro-Atlânticas' - Editora Elefante/Divulgação

De fato, "Vozes Afro-Atlânticas" é um livro de história. Dialogando com outros historiadores e historiadoras e fazendo aproximações com o contexto brasileiro, o autor é parte de uma tradição historiográfica comprometida radicalmente em afirmar a agência dos escravizados, que se torna cada vez mais necessária diante de diferentes formas de negacionismo histórico. No entanto, é inegável que a contribuição de Rafael Domingos Oliveira ultrapassa as fronteiras da historiografia da escravidão.

Com seu rigor teórico e sensibilidade afiada, o autor nos ensina como o conhecimento histórico pode iluminar as leituras que fazemos, reconhecendo uma "escrita de liberdade" —como classifica as autobiografias— num presente em que as misérias ainda são reais e históricas. Num momento em que escritores negros são cada vez mais lidos, aprendemos que não apenas nossos passos, mas também a nossa escrita vem de longe.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.