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Livros

'Autobiografia do Vermelho' faz do verso espaço ideal do ensaio

Inspirada pela lírica grega antiga, Anne Carson conta vida e formação de um artista e sua própria monstruosidade

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Autobiografia do Vermelho

  • Preço R$ 52 (192 págs.)
  • Autoria Anne Carson
  • Editora Editora 34
  • Tradução Ismar Tirelli Neto

Susan Sontag disse certa vez que compraria qualquer revista onde houvesse poemas de Anne Carson. Michael Ondaatje asseverou que não havia poeta mais interessante escrevendo em língua inglesa na época que nos tocou viver. Harold Bloom elogiou as conexões desconcertantes de sua poesia e, mais de uma vez, seu nome figurou entre possíveis vencedoras do Nobel. Seus leitores costumam ser fiéis e são cada vez mais numerosos, mas sem que a autora abandone a ousadia do gesto reflexivo e formal que lhe vale um lugar sólido no cenário literário atual.

Ainda pouco publicada no Brasil, exceto por "O Método Albertine" (Edições Jabuticaba, 2017), a poeta e professora canadense Anne Carson tem sido uma poeta de poetas, que não decepciona leitores exigentes. A editora 34 acaba de lançar um de seus livros mais importantes, "Autobiografia do Vermelho", em excelente tradução de Ismar Tirelli Neto.

retrato de mulher branca com cabelos grisalhos
A escritora canadense Anne Carson, autora de 'O Método Albertine' e 'Autobiografia do Vermelho' - Jeff Brown/The New York Times

Lançado em 1998 e apresentado como "romance em versos", o longo poema é uma história de amor e um romance de formação. O poema é uma força antiga, fonte de energia renovável que exerce pressão sobre o sentimento, excitando a reflexão. Carson fez do verso o espaço ideal para a irrupção do ensaio e, do poema, um método de leitura rigorosa mas livre, apaixonada.

Motivada por fragmentos de um poema de Estesícoro, ativo entre os séculos 7º e 6º a.C., Carson nos transporta para a vida do garoto Gerião, que acompanhamos em seus conflitos familiares, saídas de si, dúvidas e enamoramentos. Ele quer saber o que é justiça, não entende por que certas palavras custam tanto a ganhar consistência e sabe que é preciso preservar o mistério do vermelho. Certa noite sai para grafitar com Héracles, por quem está apaixonado, e desenha no muro um escravo do amor com asas.

Na tradição clássica, Gerião é descrito como um monstro vermelho, exterminado num dos célebres trabalhos de Hércules. Em Carson ele aparece aturdido mas nos encanta pela estrutura direta porém astuta de suas inquietações, e também por destrinchar toda uma série de reflexões sobre a produção de imagens que exigem dele uma "paciência vermelha".

gravura de vulcão em erupção
Erupção do monte Etna em 1637, em gravura do livro 'Mundus Subterraneus', de Athanasius Kircher, que agora ilustra a capa de 'Autobiografia do Vermelho', da poeta Anne Carson, na editora 34 - Divulgação

Abandonado em plena paixão, reencontrará Héracles anos depois, numa viagem à Argentina, onde este ressurge com um novo amante, Ancash, criando assim uma espécie de triângulo amoroso. A história termina numa padaria junto a um vulcão.

Mas não é só isso. O rapaz ensimesmado que inicia sua autobiografia aos cinco anos de idade vai buscar saídas para sua aflição na prática da fotografia. O livro conta a vida e formação desse artista, que precisa lidar com sua própria monstruosidade, isto é, uma sensibilidade que desafia o mundo regido pela normopatia.

O melhor do livro, claro, não é o enredo, mas o dobrar-se de Gerião sobre seus tormentos de tal maneira que nos sentimos testemunhas da irrupção do que reflete. Carson dilata o poema, que enlaça com a ficção e dobra na direção do ensaio. Alia o saber da pesquisadora especialista ao saber da própria poesia, sem deixar que um predomine sobre o outro, tentando evitar que o livro se torne uma aula em pele de poema. A reinscrição dos mitos na poesia contemporânea se faz aqui com uma sensibilidade capaz de interrogar ao mesmo tempo a dinâmica das paixões e os modos de sustentar o olhar, de ver e descrever o mundo.

A operação poético-narrativa de Carson relança as cartas do antigo e do atual, do erudito e do banal, do visual e do textual, produzindo não tanto sínteses mas encontros convulsivos, certamente capazes de arrancar dos leitores uma reflexão empática e comovida. Aqui, o tempo do verso que opera por quebras e o da ficção que opera por sutura estabelecem uma aliança que, assim como diz Gerião sobre aproximar a câmera de um rosto, "tem efeitos que ninguém pode calcular de antemão".

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