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Visniec traz melancolia esperançosa ao teatro, diz Clara Carvalho

Atriz conta como dramaturgo romeno afetou sua compreensão de Tchékhov e Beckett

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Clara Carvalho

Eu sou uma atriz. Só me atrevi na direção depois de muitos anos de trabalho nos palcos. Acho estranho ir ao teatro e não fazer a peça, mas a experiência como diretora é poderosa —dirigir é gerenciar fantasias, desejos, cores e texturas. A confiança depositada em uma diretora pelos atores é emocionante e assustadora. Dá uma adrenalina danada.

Anton Tchékhov e Samuel Beckett são meus autores favoritos. Eles mexem com o sentido meio absurdo da vida e me tocam muito, mas acho que nunca teria coragem de dirigir uma peça dos dois. Quem me permitiu acessar o mundo deles foi o romeno Matéi Visniec.

O dramaturgo Matéi Visniec - Divulgação

Visniec abandonou seu país natal com 31 anos para se exilar em Paris, onde vive até hoje. A Romênia é um país muito peculiar, tem uma questão feérica latente: é a terra do Drácula, cheia de ciganos, sofreu um comunismo bizarro e foi ocupada pela União Soviética.

Ele é muito cáustico com seu país e não tem nenhuma vontade de voltar para lá, mas a Romênia é a sua terra ancestral, de onde vem toda a riqueza das suas criaturas bizarras.

A Romênia é, como o Brasil, um país periférico, o que cria um parentesco com a gente. Lá também existe uma cultura inacreditável e a mistura da pobreza com os privilégios. E o romeno é uma língua latina, com muitas palavras parecidas com o português. Isso explica um pouco a ressonância que a sua obra vem tendo no Brasil.

A condição de exilado de Visniec está muito presente na linguagem que ele usa. Como o francês não é a sua língua materna, o texto carrega um artificialismo sutil, que cria um resultado muito poético.

Em 2017, fizemos um workshop com ele no Brasil. Ele contou: “A língua francesa é como uma amante para mim. Eu a trato com cerimônia, com encanto e também tenho as minhas limitações”. Isso é encantador no texto dele —ao contrário dos franceses, muito rebuscados, Matei é direto e delicado.

Sua dramaturgia entrou na minha vida em 2015. Estava fazendo uma oficina sobre Tchékhov no Grupo Tapa, estudando “As Três Irmãs” e “Tio Vânia”, e um ator trouxe “A Máquina Tchékhov”, do Visniec.

O livro é como um museu. Ele cria uma ficção se apropriando dos personagens das peças do Tchékhov e desenvolvendo outros apaixonadamente. Em um dos capítulos, Anna, da peça “Ivanov” —que na obra teve uma vida de sofrimentos terríveis e morreu de tuberculose— persegue o autor para cobrá-lo do destino miserável que ela teve. Dirigi essa peça com a Denise Weinberg e, depois, fui atrás de outros livros de Visniec.

Continuei fazendo oficinas com outras peças dele. A partir de seis monólogos de “O Teatro Decomposto”, montei “Condomínio Visniec” com atores da oficina. São seis histórias de criaturas surrealistas, que compõem um prédio de solidões. É como se em cada janela morasse uma criatura solitária em busca de encontro.

Elas querem superar essas solidões e ter o sentimento do coletivo. No fecho do espetáculo, elas vão juntas para o mar, um símbolo do inconsciente e da transcendência: “Vamos deixar para trás o rastro de sangue. Na nossa frente, o mar, e no mar nós temos que entrar limpos”.

É uma peça que se abre para a esperança. As obras do dramaturgo exploram o lado trágico e absurdo da vida, mas com humor delicado —são textos melancólicos, mas nunca têm o sentido da depressão. Sempre há esperança e compaixão pelo ser humano. Visniec tem uma melancolia esperançosa, e acho que eu também.

Isso que é bonito no teatro: é uma arte coletiva. É a arte do encontro –elenco, equipe, público presente. É ritualístico, sagrado, como se fosse uma missa. O teatro é o oposto das solidões atomizadas do mundo contemporâneo. É o contrário do isolamento —cada um no seu apartamento, vendo a sua televisão. Representa esse impulso arcaico do ser humano de ir a um lugar respirar o mesmo ar que outras pessoas desconhecidas e por isso abala os pilares do autoritarismo.

Estou vivendo um momento muito especial. Completei 60 anos, estou fazendo Liuba em “O Jardim das Cerejeiras”, de Tchékhov, estreei “Condomínio Visniec” e estou me preparando para dirigir uma terceira peça do Matei neste ano, com muita luta.

O teatro está sempre em crise, mas é sempre recriado com a plateia. É como em “O Último Godot”, de Visniec: Beckett e seu personagem Godot, discutindo em uma calçada sobre o fim do teatro depois de serem chutados para fora de uma sala, veem um público se juntar ao seu redor para vê-los, e o teatro renasce. O teatro vai sempre renascer. 


Clara Carvalho é atriz e diretora; sua peça “Condomínio Visniec” está em cartaz até 18/5 na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

Depoimento a Eduardo Sombini.

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