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Martim Vasques da Cunha

Como 'Zona de Interesse' antecipou onda atual de antissemitismo

Filme sobre Holocausto indicado ao Oscar mostra que a barbárie corrompeu nossa memória

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Indicado a cinco Oscars, incluindo melhor filme, "Zona de Interesse", sobre família nazista que mora ao lado de um campo de concentração, espelha o momento atual, em que a "presença invisível" da memória é dominada pela barbárie, avalia autor. Tema reverbera em outros finalistas da premiação, como "Oppenheimer" e "Assassinos da Lua das Flores", com seus personagens assombrados pelo passado.

No livro "A Descoberta do Inconsciente", do psiquiatra suíço Henri F. Ellenberger, publicado recentemente no Brasil pela editora Perspectiva, sabemos que o filósofo francês Henri Bergson relatou o seguinte fato: em 4 de agosto de 1914, quando abriu um jornal e bateu os olhos na manchete "Alemanha declara guerra contra a França", teve a súbita percepção de uma presença invisível, como se uma figura mítica tivesse escapado de um livro e ocupado tranquilamente um lugar em seu quarto.

Bergson, como todos aqueles que eram crianças durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871, havia passado os 12 ou 15 anos seguintes com a ideia de que uma nova guerra era iminente; e, depois disso, com uma complexa sensação de que uma nova guerra era tanto provável quanto impossível.

Sandra Huller em cena do filme 'Zona de Interesse', de Jonathan Glazer
A Atriz Sandra Huller em cena do filme 'Zona de Interesse', de Jonathan Glazer - Divulgação

Foi ali que o filósofo francês, nos conta Ellenberger, deu-se conta de que esse acontecimento, cuja expectativa havia preenchido com inquietude os seus últimos 43 anos, havia então chegado. A despeito de seu horror perante a catástrofe, Bergson não tinha como não se maravilhar com a naturalidade com a qual a abstrata ideia de guerra se havia tornado uma presença viva.

Essa guerra, que nós vemos, em retrospecto, como um súbito relâmpago e como uma dramática interrupção da caminhada da Europa rumo à felicidade e à prosperidade, segundo o médico suíço, parecia a muitos contemporâneos o inevitável desfecho de uma longa série de conflitos, ameaças, guerras locais e rumores de guerra, quando não uma libertação de tensões insuportáveis.

Ao lermos este trecho com atenção redobrada, sabemos que estamos vivendo exatamente esse mesmo cenário, um cenário cuja metáfora perfeita é a expressão "zona de interesse", por coincidência o título de um dos últimos romances de Martin Amis (falecido em 2023) e do longa mais recente do cineasta Jonathan Glazer (indicado a 5 Oscars, incluindo melhor filme e melhor filme internacional). Sabe-se lá por que, o título do filme no Brasil não tem o artigo do título do romance, "A Zona de Interesse".

Por coincidência, Glazer e Amis são ingleses, porém só o cineasta é judeu, o que cria uma tensão peculiar entre as duas obras, como se fossem marcadas pela mesma presença invisível captada anteriormente por Bergson na Primeira Guerra —e que, na verdade, todo mundo sabe o que é, e todos têm medo de dizer, pois ela se estendeu também na Segunda Guerra Mundial, desta vez sob o espectro do nazismo.

Esta presença é "a pedagogia da Shoah", dita por outro francês, Pascal Bruckner, que explica como o campo de concentração de Auschwitz (o cenário onde se passam o romance de Amis e o longa de Glazer) se tornou um monstruoso objeto de cobiça, o padrão-ouro do sofrimento humano e um assunto que enlouquece a todos.

A Shoah é essa "presença invisível" que nos atormenta desde a metade do século 20 e que ainda nos incomoda até hoje. A obra de Glazer, compostas por filmes perturbadores como "Reencarnação" (2004) e "Sob a Pele" (2013), está aí para nos provar isso.

"Zona de Interesse" narra os dilemas cotidianos da família do carrasco nazista Rudolf Höss (e o "interesse" dele está no detalhe de que o administrador do campo de concentração precisa ser o mais eficiente possível na hora de exterminar todo um povo). O filme é lançado em um momento histórico em que todo o mundo político tenta criar seu Auschwitz particular.

Não à toa, esse tema reverbera em outros longas indicados ao Oscar, com seus personagens assombrados por uma história particular e pela presença invisível da memória que não consegue mais ser recuperada.

Isso ocorre em "Oppenheimer", de Christopher Nolan, cujo protagonista é atormentado por visões de um universo oculto que vão culminar na maior arma de destruição em massa já criada (a bomba atômica), passando pela tribo Osage de "Assassinos da Lua das Flores", retratada por um Martin Scorsese que deseja se redimir diante do massacre dos índios americanos, e no romântico "Vidas Passadas", de Celine Song, em que uma mulher precisa lidar com o luto da sua própria infância para ir em frente.

Não podemos nos esquecer também do professor ranzinza feito por Paul Giamatti em "Os Rejeitados", que precisa destruir tudo o que construiu para renascer; do gênio brilhante que foi Leonard Bernstein, interpretado com brio por Bradley Cooper em "Maestro", um sujeito que não consegue se libertar das taras que o aprisionam a um passado imutável; dos escritores criados, respectivamente, por Justine Triet e Cord Jefferson em "Anatomia de uma Queda" e "American Fiction", que elaboram narrativas a partir de suas biografias para suportarem o futuro que ainda lhes resta.

Há ainda as moças artificiais de "Barbie" e "Pobres Criaturas", incapazes de admitir para si mesmas que viver na realidade significa que lembrar é existir —e que existir é, acima de tudo, resistir. Obviamente, "resistir" é algo que nunca existiu para quem esteve em Auschwitz, seja como carrasco, seja como vítima.

No filme de Jonathan Glazer, a memória assombrada retorna por meio de sons captados minuciosamente pela equipe do diretor. O espectador precisa reconhecê-los, dentro de suas lembranças iconográficas, como fragmentos desta pedagogia da Shoah.

O mesmo procedimento ocorre no livro de Amis, mas ali as palavras se transformam em sugestões de imagens, e a trama envolvendo um triângulo amoroso ameniza um pouco a brutalidade cifrada —o que prova que o escritor inglês, apesar de seu talento verbal, talvez fosse apenas um grande romancista de segundo escalão. Glazer vai por um rumo completamente inesperado: ele adapta Amis, retirando o excesso sentimental, mas ao mesmo tempo preserva a sua essência.

Ambas as obras não são comentários sobre essa "banalidade do mal" que se tornou outro clichê para especialistas que cospem exibicionismo moral a respeito de um assunto extremamente sério. Elas são meditações —a de Glazer mais bem-sucedida que a de Amis, sem dúvida— sobre a eficácia da barbárie.

Para Rudolf Höss, o grande problema é como instalar um mecanismo primoroso, apelidado de "crematório rotativo", que incinere os corpos de suas vítimas com extrema precisão. O dilema de sua esposa, Hedwig (em interpretação fabulosa de Sandra Hüller, superior ao que ela fez em "Anatomia de uma Queda"), é o de manter a casa em ordem, desde o jardim geométrico, adubado com as cinzas dos judeus que morrem no outro lado do muro da sua residência, até ficar irritada com o piso molhado, um deslize feito por garotas que escrevem no livro de visitas que ali "passaram os melhores momentos das nossas vidas", numa espécie de Éden que mora à beira do Sheol (o "mundo dos mortos", em hebraico).

Glazer joga com essa oposição entre ordem e caos em cada fotograma do seu longa. Em primeiro lugar, filmando seus atores como se estivessem em um Big Brother repleto de simetria, com câmeras escondidas por toda a habitação; em segundo, ao narrar, por meio de um filtro infravermelho, a história igualmente verídica de uma garota polonesa (chamada Alekasandra Bystrón-Kolodziejczk) que simboliza a resistência espiritual que sempre existiu, apesar de toda a perversidade ocorrida em Auschwitz.

"Não havia apenas a escuridão pura e terrível", disse o cineasta em uma entrevista a respeito destas epifanias inseridas de propósito para perturbarem a eficácia da barbárie da família Höss. Sim, havia também, como já escrevemos, a pedagogia da Shoah.

E o que seria este tipo de lição? Impedir, a qualquer custo, que a "presença invisível" da memória viva se transforme em um arquivo morto. Ao mesmo tempo que nestes lugares são recolhidas e catalogadas as ruínas da nossa história, eles são também o local onde nós limpamos a sua sujeira.

Não à toa, a sequência final de "Zona de Interesse" —em um diálogo direto com outra obra-prima sobre a bestialidade humana, o documentário "The Art of Killing" (2012), de Joshua Oppenheimer— acontece no que sobrou do campo de concentração, o Museu Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Ali, Glazer afirma, com incrível sutileza, que a eficácia da barbárie também dominou o assombro da memória.

Quem explicou melhor essa tensão entre a presença invisível de uma guerra que está por vir e a pedagogia da Shoah, de modo infinitamente superior a Hannah Arendt, foi o escritor alemão W.G. Sebald, em seu volume de ensaios "Campo Santo". Sebald afirmou que eles, os mortos, continuam ao nosso redor, mas às vezes acreditamos que talvez desapareçam.

Agora que chegamos ao ponto em que o número de viventes na Terra dobrou ao longo de apenas três décadas, escreve o autor alemão, e tornará a triplicar na próxima geração, já não precisamos mais temer o antes superpoderoso povo dos mortos. Já não se pode mais falar de culto e veneração eterna aos antepassados.

Pelo contrário, os mortos precisam agora ser eliminados com a maior rapidez e precisão possíveis. Quem nunca pensou durante uma cerimônia fúnebre no crematório, continua o escritor, enquanto o caixão vai em um carrinho para a câmara de incineração, que a medida de nos despedirmos dos nossos mortos é marcada pela pressa e uma mal disfarçada sordidez?

Mesmo o espaço que reservamos aos mortos, prossegue o trecho em "Campo Santo", é cada vez menor, e com frequência, mal passados alguns anos, eles são dispensáveis. "Para onde se levam os restos mortais, onde são descartados?", arremata Sebald.

Eles são levados e descartados nos "raios-de-sol" declamados no poema de mesmo título, escrito por Joseph Wulf, ditos em absoluto silêncio durante a película de Glazer, sob a mesma presença invisível pressentida por Henri Bergson no início do século 20 e que nos assombra agora, em que um novo Holocausto se aproxima para os judeus cuja memória é constantemente assassinada por nossos governantes e intelectuais.

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