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Maíra Moreira

Livro propõe repensar psicanálise para tratar de identidades sexuais

Em 'O Ser Sexual e Seus Outros', Pedro Ambra defende uma atuação mais próxima da vida e menos resistente a mudanças

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Maíra Moreira

Psicanalista e autora de ‘O Feminismo é Feminino?’ e ‘Fins do Sexo’

[RESUMO] Livro propõe repensar a psicanálise para torná-la capaz de refletir a respeito de identidades sexuais e novas formas de interação na sociedade.

Em tempos de morte da retórica, de menino nasce menino e menina nasce menina, Pedro Ambra não se fixa nem no nascer, nem no tornar-se aquilo que se nasce, nem em um devir sem corpo.

Não só o sujeito é retirado e reanimado da visão conservadora que toma a diferença sexual, a cis-heterossexualidade e o modelo patriarcal como fundantes do laço social, mas também a própria psicanálise é acordada e convidada a se pensar como teoria em processo.

Um dos primeiros e muitos méritos do livro "O Ser Sexual e Seus Outros: Gênero, Autorização e Nomeação em Lacan" está na forma como o autor produz uma psicanálise crítica sem desqualificação ou pedido de desculpas.

O psicanalista Jacques Lacan, durante seminário em Paris, na década de 1970 - Reprodução

É pelo movimento de compreender que a psicanálise possui uma clínica que informa e força avante a teoria que Pedro Ambra toma os fenômenos culturais de época, que também galgaram seu lugar no divã, e produz uma torção no interior da teoria, através de um Lacan versus Lacan —e alguns outros.

Declinando a noção de ser sexuado para ser sexual, Ambra extrai consequências bastante profícuas, inclusive a de pensar em uma psicanálise menos preocupada com a conservação de si e menos resistente às formas como outros a nomeiam.

Das teses fundacionistas da diferença sexual e do modo monossexual de organização da libido, o autor levanta uma hipótese processual da assunção de um sujeito a uma identidade sexuada, em que o sujeito já não está lá sozinho ou detido temporalmente em uma maturação junto aos pais.

As questões relativas às sexualidades e nomeações não são de interesse nem de desinteresse exclusivo do campo psicanalítico, mas o implicam diretamente enquanto teoria investida no sexual e que, outrora, acreditou produzir verdades sobre o sexo.

A psicanálise continua sendo evocada à esquerda e à direita, como forma de se valerem de algo no sentido da conservação da heteronorma ou do avanço de pautas progressistas. Longe de se querer ensimesmada, a psicanálise quer fazer parte da cidade, da coisa pública, das escolas, das instituições de saúde ligadas ao SUS. Ela se posiciona a favor da democracia genérica, porque talvez se posicionar contrária à democracia liberal ainda seja muito, e dialoga com as pautas identitárias depois de muita insistência —e alguma resistência.

Contudo, os saberes psicanalíticos são principalmente convocados para categorizar o que seria normal e o que seria patológico. Isto não é pouca coisa: o destino daqueles compreendidos como abjetos é violento a ponto de podermos encontrar essa violência até mesmo no setting analítico.

A posição da psicanálise e dos que a exercem não pode ser apenas pela conservação e reprodução de si; a teoria que há muito fundaram ainda está sendo escrita.

Que Lacan já tenha advertido que é muito chato para cada analista ter de inventar a psicanálise, isso talvez ocorra também na necessidade de que ela esteja à altura de seu tempo. Afinal, talvez as transformações sociais sejam mais rápidas que as interpretações psicanalíticas, que as sucedem.

A psicanálise produz uma gramática sobre o sujeito que não ficou confinada nos consultórios ou nas teorias; ela também informa toda uma sociedade que se viu contaminada por esse vírus, para o qual ainda não há vacina, pois seus efeitos intencionais e colaterais são de cura do(s) sintoma(s).

Longe de fazer uma crítica à identidade em que identitários são sempre os outros —e a ideologia francesa pode inclusive servir muito bem a tal posição— ou de se limitar à tábua da sexuação, que virou a grande tábua da salvação dos lacanianos sempre que os acusam de machistas, homofóbicos ou transfóbicos, Ambra utiliza a noção de identificação em Lacan nos diferentes modos e tempos em que este lançou mão do termo, para questionar, inclusive, a tão assegurada cis-heterossexualidade.

Passando pelo real, simbólico e imaginário até o quarto nó, em um texto povoado por nomes que, segundo uma identidade lacaniana puríssima, talvez nem teriam sido convidados para o debate, o livro provoca também um movimento por parte do leitor, que já não pode se sentar confortavelmente diante de confirmações daquilo que já lera até então.

Entender a identidade sexual como processo o leva até a questão da autorização, que não se faz sem alguns outros, e da nomeação, naquilo que ela comporta de heterodesignação e de um nomear-se a si mesmo dentro de um coletivo. Ambra recupera a importância das comunidades LGBTQIA+ como possibilidade de existência para aqueles que estão, no limite, expulsos do laço social.

Esse autorizar-se de si difere do discurso universitário no sentido de dar título a, como outrora fizeram as ciências sexuais nomeando o que seria uma transsexualidade verdadeira ou falsa. Ou seja, o autorizar-se de si mesmo insere a possibilidade de um sujeito falar de si para os outros que elegeu como comunidade, aqueles dos quais um ser sexual se vale para se fazer reconhecer.

Falar de si como ser sexual é um ato de nomeação que inclui as heterodesignações e as identificações a um grupo, de uma autorização a se tornar o que os outros o nomeiam e a identificar-se com um grupo de outros pela nomeação que os une. Não é um ato consciente, autônomo ou volitivo, porque depende dos outros com os quais o sujeito se vê afetado.

"De que vale uma teoria que não se compromete com a explicitação de seu horizonte político de transformação?" Por encerrar sua obra com essa reflexão, não posso deixar de nomear Pedro Ambra como autor, psicanalista e sujeito político à altura de seu tempo e de desejar que, com ele, mais psicanalistas se autorizem a pensar outra psicanálise, menos apartada do mundo e de suas transformações.

O Ser Sexual e Seus Outros: Gênero, Autorização e Nomeação em Lacan

Avaliação:
  • Preço: R$ 154 (512 págs.); R$ 94 (ebook)
  • Autor: Pedro Ambra
  • Editora: Blucher

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