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Pedro Donizete Ferreira

Roudinesco, ao chamar os outros de identitários, expressa posições do identitarismo branco

Em novo livro, historiadora francesa sustenta que cultura identitária acompanha erosão de ideal coletivo

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Pedro Donizete Ferreira

Psicanalista e mestre em psicologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

[RESUMO]Elisabeth Roudinesco, em novo livro que sustenta que movimentos emancipatórios contemporâneos privilegiam gênero, raça e sexualidades a perspectivas de transformação social, expressa posições do identitarismo branco, movimento de defesa que classifica as demandas do outro como identitárias.

No Brasil, o nome de Elisabeth Roudinesco não gera estranheza. Tendo a maioria dos seus livros editados pela Zahar, é lida por aquelas e aqueles interessados pela psicanálise, suas histórias e, especialmente, dois de seus personagens: Freud e Lacan.

Em sua última obra, "O Eu Soberano: Ensaios sobre as Derivas Identitárias", a autora desenvolve a hipótese de que os movimentos emancipatórios, como o feminismo, o anticolonialismo e o antirracismo e LGBTQIA+, "já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor".

Elisabeth Roudinesco no Salão do Livro de Paris de 2017 - Élisabeth Roudinesco no Facebook/Reprodução

Em vez disso, a partir da hipertrofia do eu, se excluiria tudo o que foge ao si mesmo, culminando na destruição da alteridade e no fenômeno contemporâneo do cancelamento, o linchamento virtual. Para a autora, esses movimentos, historicamente ligados à esquerda, se aproximariam, pela mesma lógica, dos ideais da extrema direita.

A cultura identitária substituiria a cultura do narcisismo e a militância clássica, configurando-se como uma resposta "ao enfraquecimento do ideal coletivo, à queda dos ideais da revolução e às transformações da família". Duas categorias são privilegiadas na análise do que a autora denomina derivas identitárias: gênero e raça, ambas se articulando à sexualidade.

No que concerne ao conceito de gênero, o livro afirma que não é mais utilizado pelo movimento de emancipação das mulheres. De outro modo, a proposta seria "consolidar, na vida social e política, uma ideologia normativa de pertencimento que chega a ponto de dissolver as fronteiras entre o sexo e o gênero".

Para Roudinesco, isso se justificaria a partir das críticas "politicamente corretas" de algumas feministas a certas obras da pintura e do cinema, do combate queer à "heteronormalidade", da supressão do binarismo biológico realizada por Anne Fausto-Sterling (hipótese dos cinco sexos), da renúncia à cirurgia nos casos de pessoas intersexo, da transição sexual infantil e do "culto dos boderline" de Judith Butler.

Sobre a discussão racial, ela argumenta que algumas correntes intelectuais, sobretudo os estudos pós-coloniais e decoloniais, ressuscitaram o conceito de raça, enterrado por Lévi-Strauss desde 1952. Em nome de uma política identitária da raça, essas teorias se desviariam das contribuições de suas grandes inspirações: Frantz Fanon, Aimé Césaire, Léopold Senghor e Edward Said.

Denunciando os neologismos e o "falar obscuro" de autores como Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak, Roudinesco diz acreditar que essas teorias não realizam "mais que renovar as velhas teses da etnologia colonial". Por fim, enfatiza que essas vertentes renegam as contribuições do próprio anticolonialismo presente nas metrópoles, especialmente na França.

Já no último capítulo, a autora resume os medos conspiratórios da extrema direita francesa: um projeto de "grande substituição" da nação e dos valores franceses por um mundo árabe e negro, algozes que ocupam agora o lugar dos judeus. Esse discurso, amplamente divulgado nas mídias da França, é conduzido por nomes como Éric Zemmour e Marine Le Pen, ambos com alto grau de instrução universitária.

Acredito que a posição de Élisabeth Roudinesco seja um expoente daquilo que Deivison Faustino nomina identitarismo universalista branco. O movimento de, pejorativamente, classificar as demandas do outro como identitárias me parece algo mais da ordem de um mecanismo de defesa do que um convite à efetiva transformação das relações de alteridade. É digno de nota que a psicanálise não pode ser apartada da luta pela justiça social, sendo, portanto, compatível com o desejo de transformação social.

Dessa forma, o contexto social e político, além da matriz clínica, possibilita novos ramos do forte tronco cultivado por Freud. Ele, afinal, como escreveu em "Caminhos da Terapia Analítica" (1919), ajudou "pessoas com as quais não tinha qualquer laço de raça, educação, posição social ou visão de mundo, sem incomodá-las em suas peculiaridades".

O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias

  • Preço R$ 89,90 (304 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Elisabeth Roudinesco
  • Editora Zahar
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