'Independências' se apropria de efeméride sequestrada por discurso oficial
Negros, indígenas, homens e mulheres pouco conhecidos têm protagonismo em minissérie de Luiz Fernando Carvalho
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"Independências", série pop barroca dirigida por Luiz Fernando Carvalho e produzida pela TV Cultura, convida a uma experiência sinestésica da biodiversidade brasileira, animal, vegetal, étnica, de gênero, religiosa, linguística, histórica, passado e presente.
Uma nova dramaturgia para dar conta da nova historiografia, que nos últimos anos enriquece o conhecimento sobre o período, com a reunião e publicação de panfletos, manifestos, cartas e periódicos de época. Esses materiais destacam a dinâmica conflituosa que vivia a colônia elevada a Vice-Reinado para receber a família real, que se refugiava das investidas napoleônicas decorrentes da Revolução Francesa. Revoltas com teores diversos, em diversas partes do território.
A série realça a atuação de pessoas até recentemente menos reconhecidas no estudo dos eventos que precederam e sucederam a constituição do Estado brasileiro, como d. Leopoldina, José Bonifácio, Chaguinhas, Frei Caneca, Maria Felipa, Maria Graham, entre outros.
Que não se espere narrativa linear a apresentar situações sucessivas movidas por relações simples de causa e efeito; planos montados com a interveniência de recursos convencionais, como batentes de portas, molduras recorrentes em filmes convencionais, para cortar e sugerir a passagem de personagens de um lugar a outro.
Em "Independências", não há portas nem paredes. Os espaços são apenas sugeridos, uns mais abstratos que outros; seus contornos, indefinidos. Espaços incontidos. Às vezes, uma peça de cenário apoia a atuação distanciada do elenco: um sofá vermelho, uma cama real, um jardim artificial.
Lentes distorcem os corpos dos atores, Antônio Fagundes, Walderez de Barros, Ilana Kaplan, Daniel de Oliveira, Celso Frateschi, Maria Fernanda Cândido, a atriz inglesa Luisa Sexton, vestidos com figurinos não naturalistas, às vezes com uso de materiais ou modas contemporâneas. Banquetes da realeza lembram Peter Greenaway e nos sinalizam os bons modos de então.
A atriz portuguesa Isabel Zuaá faz Peregrina, narradora negra em tom de griot, linda, enfeitada de cabelos esculturais, devidamente elaborados em trança. Trança é tema-proposta, tranças de repertórios. Ela narra em quimbundo.
Legendas amarelas, palavras na tela, palavras-imagem. Palavras-tema sintetizam segmentos de cada livro dessa história solene: "amor", "desilusão" em diversas línguas, anos a sensibilizar para a diversidade sonora de cada uma. Quase nada é transparente, quase tudo é opaco.
Não se trata de explicar, mas de sugerir. O vaivém no tempo circunscreve o avanço cronológico dos movimentos da família real. Em torno dela, referências a figuras negras, indígenas, homens e mulheres assumem agência. Alusões a fatos conhecidos. Informações lacunares assumem a incompletude, convidam espectadores interessados à pesquisa.
A trilha musical é grandiosa e eclética, como os repertórios pictóricos e audiovisuais, Mozart, Slam, cantos afro e indígena. Telas de época, cores desbotadas como a sugestiva natureza morta de frutas tropicais de Agostinho José da Mota, jaca de entranhas abertas a exibir gomos cor de creme, desproporcionalmente grandes e suculentos, que convivem com fragmentos de videoarte contemporânea, como "Botannica Tirannica", de Giselle Beiguelman.
Vídeo experimental na televisão aberta e pública; obsoleta? Em uma conjuntura instável e decisiva, a emissora paulista se apropria da efeméride sequestrada pelo discurso oficial, carregado de xenofobia, para estimular o pensamento. Afinal, independência se liga aos modernismos em suas dimensões políticas e estéticas e à crise contemporânea.
Ensaio, documentário e ficção histórica. Elementos narrativos e não narrativos construídos por uma equipe que conta com a participação do dramaturgo Luis Alberto de Abreu e de equipe de colaboradores que inclui Tiganá Santana, Kaká Werá Jecupé, Ynaê Lopes dos Santos, Cidinha da Silva.
"Independências" pode também ser vista como cura. Gravada durante a pandemia, envolveu a volta ao trabalho de atores traumatizados com o repentino e longo isolamento, que pôs em questão a própria atividade artística. Durante a pandemia, as gravações estiveram sujeitas aos avanços e recuos da doença. A opção pela presença de poucos atores em cena.
Diante da atrofia corporal, trauma, solidão e sensação de vulnerabilidade, a preparação de atores envolveu fisiologia, além de fisioterapia.
A série convida ao mergulho no universo multifacetado das cosmologias que nos circundam e que propõem formas diferentes de estar no mundo. Proposições não utilitaristas, formas relacionais de pensar a vida, conectadas ao ambiente, sugerem novas possibilidades para um Brasil que se disponha a encarar suas fraturas para engendrar um país livre, democrático, inclusivo e sustentável, disposto a abandonar a fracassomania de que falava Albert Hirschman e a atuar de propositivamente em um mundo devastado pela crise climática e pelo desentendimento.
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