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Candidatura de responsável por transição na Bolívia é algo insólito, diz ex-presidente

Carlos Mesa, que volta a concorrer à Presidência, apresenta-se como opção moderada em país polarizado

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Buenos Aires

O ex-presidente da Bolívia Carlos Mesa, 66, faz a campanha eleitoral mais longa de sua vida. Candidato à Presidência no pleito de outubro de 2019, anulado após suspeitas de fraude, concorre outra vez ao cargo.

Como a candidatura para a votação do ano passado foi definida nas primárias de 2018, Mesa está há quase dois anos no mesmo ciclo eleitoral.

Um ciclo muito atípico, aliás. Oficialmente, o primeiro turno deu a vitória ao então presidente Evo Morales, mas o resultado foi contestado tanto por Mesa quanto por organismos internacionais.

A incerteza política, gerada pela renúncia de Evo após pressão dos militares, tornou-se surto social com manifestações nas ruas de todo o país.

Carlos Mesa, candidato à Presidência da Bolívia, após entrevista coletiva sobre a renúncia de Evo Morales - Manuel Claure - 11.nov.19/Reuters

A eleição acabou cancelada, e o poder ficou de modo interino com Jeanine Añez, que depois de meses marcou as novas eleições para maio passado.

Vieram então a pandemia de coronavírus, e um desentendimento entre partidos e o novo tribunal eleitoral da Bolívia. O impasse só resolvido por meio de um acordo, na semana passada.

Agora, a nova votação está marcada para 6 de setembro, quase um ano depois da eleição original.

"Sigo firme com meus valores e crítico em relação aos dois lados da polarização que vem fazendo tanto estrago ao país. De um lado o grupo de Evo Morales, e, de outro, o de Jeanine Añez", afirma o centro-esquerdista Mesa por videoconferência. "Quero ser a opção moderada e séria dessa eleição."

O senhor apoiou, no início, o governo de Jeanine Añez, mas se mostrou contra a candidatura dela à Presidência. Por quê? Desde antes da pandemia considero a candidatura da presidente não apenas um erro como algo insólito. Demos apoio no princípio porque ela assumiu a responsabilidade de garantir o processo eleitoral. Isso era tudo o que deveria fazer. Apresentar-se depois como candidata foi uma incongruência. Não conheço um país democrático com um sistema de transição ordenado que permita algo assim.

O candidato de Evo Morales, Luis Arce, reclama de não poder fazer campanha devido à quarentena, enquanto Añez não sai da TV. O sr. pensa o mesmo? Sim, a presidente faz uso de modo injusto da máquina estatal em sua campanha. E nesse ponto segue a mesma linha de Morales quando estava no cargo. Ela, por exemplo, aparece pessoalmente num comercial da TV estatal explicando aos cidadãos como devem ir ao banco retirar o bônus especial para esse período de emergência. Isso mostra como está usando a luta contra o coronavírus em favor de sua campanha. Eu venho cumprindo rigorosamente a quarentena. Minha única forma de fazer campanha tem sido por meio das redes sociais.

O senhor crê que Evo está se portando de maneira democrática nesse processo? Morales nunca teve um espírito democrático. Ele enfraqueceu a democracia boliviana. Quando tinha respaldo popular majoritário, aplaudia a democracia, mas, quando deixou de tê-lo, não hesitou e realizou fraudes. No momento mais duro da atual crise, durante a transição, quando a Bolívia vivia dias de violência e distúrbios sociais, Morales instigou, desde o exílio, que estradas fossem fechadas, e cidades, bloqueadas por militantes do MAS [partido Movimento para o Socialismo].

Isso causou desabastecimento e sofrimento à população. Também estimulou violência. Com o coronavírus, os ativistas do MAS bloquearam a entrada de caminhões que recolhem lixo na cidade de Cochabamba. A cidade ficou mais de uma semana sem a possibilidade de recolher lixo. Foi uma decisão do MAS. E quem lidera o MAS, enquanto não se decida o contrário, chama-se Evo Morales. Esse exemplo é muito ilustrativo de como ele não vem sendo um ator democrático nesse período difícil.

Ainda não houve uma apuração dos atos de repressão ocorridos depois da chegada de Añez ao poder. Como vê isso? É certo que houve abusos, e com perda de vidas humanas, o que é muito grave. Mas há que se entender, também, que os primeiros 15 dias de seu governo foram muito complicados. Estou de acordo que se deva fazer uma investigação profunda das responsabilidades, mas também é preciso entender que foram dias difíceis, e não atuar com dureza poderia ter resultado num saldo negativo ainda maior.

Mas as medidas duras não se resumiram a esses 15 dias. E os ataques à liberdade de expressão? Isso é de fato grave. O decreto que buscava impedir a desinformação sobre temas de saúde foi um grave avanço contra o direito a se informar e contra a liberdade de expressão. É uma coisa positiva que tanta gente, dentro e fora, tenha se manifestado contra isso, o que causou o recuo do governo.

A pandemia expôs um problema do sistema de saúde que já existia? Evo Morales nos contou uma grande mentira ao dizer que deixou o país em boas condições na área de saúde. Essa pandemia mostra que não temos nem a base mínima. Por outro lado, o atual governo se mostra muito pouco transparente em seus investimentos no combate ao coronavírus. E ineficiente, porque estamos vendo que, apesar da longa quarentena, não há mais leitos, mais respiradores, mais unidades de UTI. Estamos com números altos em comparação a países das nossas dimensões e população. Depois, tem a corrupção. Houve o escândalo que resultou na prisão de um ministro da Saúde. O que confirma que a gestão toda da pandemia está sendo lamentável.

Como se apresentar como um candidato moderado num país tão polarizado? Mantendo nossa linha de conduta inalterável. A força da minha proposta é justamente a de não me mover de acordo com a direção que o vento sopra ou com o calor do sol que mais aquece. Mantenho minha proposta e trato de acompanhar de modo crítico o governo da vez. Em 2019, isso se traduziu em votos. Se não houvesse fraude, haveria um segundo turno, e tínhamos chance de vencer. O mesmo ocorrerá agora, pois trabalhamos para ter o voto de centro e dos que não querem nem um lado nem outro.

Como o sr. vê a relação com os outros países da região e, especificamente, com o Brasil? O grande erro de Morales e de Añez foi terem ideologizado as relações internacionais. Isso, que não ocorre só na Bolívia, é a razão de ter levado a América do Sul ao desastre da diáspora. O presidente Bolsonaro foi eleito pelo voto popular. Tenho diferenças, critérios distintos, mas reconheço sua legitimidade. E o mesmo digo do presidente Alberto Fernández, da Argentina, que tem muita proximidade com Morales e se excede em suas críticas a Añez. Não tem comportamento adequado de um chefe de Estado.

Porém, respeito Fernández, porque é um presidente democrático. Espero ter uma boa relação com ambos, que são os presidentes dos nossos principais vizinhos. Um chefe de Estado precisa deixar suas opiniões pessoais num segundo plano, debaixo dos interesses do país.

O senhor manteria o interesse da Bolívia de se transformar em membro pleno do Mercosul? Sim, sou um fanático da integração. Embora no caso do Mercosul tenhamos agora uma situação difícil devido às marcadas diferenças entre Bolsonaro e Fernández. Mas não sou eu quem deve dar lições a eles. Creio que brasileiros e argentinos deveriam cobrar que seus líderes se entendam.

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