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Eleições EUA 2020

Eu discordo! Ginsburg não errou

Ao exercer seu direito de permanecer na Suprema Corte até o fim da vida, juíza americana ocupou um lugar da maior importância, que por tanto tempo foi negado às mulheres

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Flavia Annenberg Marina Lima

​Há um mês, o mundo perdeu Ruth Bader Ginsburg, uma das maiores referências na conquista dos direitos das mulheres nos Estados Unidos. De lá para cá, o presidente Donald Trump aproveitou a vaga deixada na Suprema Corte para indicar Amy Coney Barrett, uma juíza conservadora que preferiu não manifestar seu posicionamento sobre assuntos sensíveis quando questionada pelo Senado.

​Se ela for aprovada, os republicanos terão a chamada "maioria plena" na Corte, com três juízes nomeados por George W. Bush e três por Donald Trump contra três democratas, um nomeado por Bill Clinton e duas por Barack Obama.

Diferentemente do Brasil e de outros sistemas constitucionais, na Suprema Corte dos Estados Unidos não existe aposentadoria obrigatória por conta da idade. Trata-se de um desenho institucional que permite que cada um decida seu momento de sair e que, no limite, confia aos próprios juízes o poder de escolha. Não surpreende que as mulheres que o exercem sejam julgadas de forma mais dura do que os homens. Sandra O'Connor, a primeira juíza mulher da Suprema Corte, se aposentou aos 75 anos, sob pressão, ao passo que o juiz John Paul Stevens permaneceu até fazer 90.

A juíza da Suprema Corte dos EUA Ruth Bader Ginsburg, em foto de 2010; ela morreu em setembro de 2020, aos 87 - Tim Sloan - 8.out.10/AFP

Na história da Suprema Corte americana, até o momento, houve quatro juízas mulheres e 110 homens, dos quais 108 brancos. Quando perguntada sobre o número de mulheres que seria suficiente na composição da Corte, a juíza Ruth Ginsburg respondia: "nove" —ou seja, todos os seus membros. Se a resposta gerava surpresa, ela retrucava afirmando que o fato de ter nove homens nunca havia causado o mesmo espanto.

Ginsburg tornou-se juíza depois de uma longa trajetória de defesa dos direitos das mulheres. Pioneira em teses jurídicas de igualdade, liderou estratégias ousadas, escolhendo, algumas vezes, casos paradigmáticos em que os estereótipos de gênero acabavam por desfavorecer os homens (por exemplo, um viúvo que não teria direito ao benefício social para ele e para o filho após o falecimento de sua esposa enquanto a uma viúva mulher seria assegurado esse direito).

Sua intenção, ao seguir esse caminho, era sensibilizar e convencer os juízes homens, que se identificavam mais com requerentes também do sexo masculino. Ainda que seus posicionamentos possam gerar divergências em algumas análises feministas, é inegável o papel de Ginsburg no avanço da igualdade de gênero. Já como juíza na Suprema Corte, liderou decisões importantes, sendo um dos casos mais lembrados a declaração de inconstitucionalidade do programa do Instituto Militar da Virgínia que não aceitava mulheres.

Alguns dizem que Ginsburg deveria ter se aposentado no primeiro mandato do presidente Barack Obama, de forma a assegurar sua substituição por um democrata. Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo, por exemplo, classificou esse como "o maior erro de Ginsburg", em artigo publicado nesta Folha um dia depois da morte da juíza.

Seja por ter aprendido com o arrependimento de O'Connor após sua aposentadoria ou porque tinha como referência juízes homens que haviam permanecido na Corte por décadas, Ginsburg respondeu mais de uma vez a jornalistas que aposentar-se não era parte de seus planos. E, nessa discussão, sua opinião importa.

Hoje, sabemos que o Senado republicano barrou aquela que seria a última nomeação do presidente Obama para a Suprema Corte, após o falecimento do juiz Antonin Scalia, e que Trump ganhou as eleições em 2016. Mas Ginsburg não tinha como prever esses acontecimentos. Além disso, a pressão por sua aposentadoria pressupunha que todos os juízes indicados por presidentes da mesma vertente política votassem da mesma forma em todos os casos. Ainda que isso seja válido na maioria das vezes, não se trata de uma verdade absoluta.

O juiz Breyer, também nomeado pelo presidente Bill Clinton, discordou de Ginsburg em 19% dos casos. Ainda, um novo juiz democrata poderia ser mais conservador do que ela, da mesma forma que o juiz Scouter, supostamente republicano, migrou para posicionamentos mais liberais em alguns temas.

A divergência em relação a um futuro sucessor poderia existir justamente em casos caros aos direitos de mulheres, pessoas negras, LGBTQIAP+, entre outros grupos que ela defendeu corajosamente em uma corte pouco diversa. Por exemplo, a Suprema Corte decidiu pela constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2015, com placar apertado de 5 votos a 4, no segundo mandato do presidente Obama.

​Mesmo nos casos em que sua posição não foi a vencedora —e não à toa a expressão "eu discordo" tornou-se um jargão conhecido de Ginsburg—, a juíza exerceu um papel importante ao expressar sua voz. Afinal, o dissenso também planta sementes na jurisprudência das cortes constitucionais. Ao manter o debate aberto, entendimentos minoritários acabam por virar subsídios para posições majoritárias.

Os últimos anos nos EUA teriam sido ainda mais difíceis sem a figura de Ginsburg, que se popularizou entre jovens como "RBG" e se tornou um ícone antidiscriminação. Julgar que, ao decidir não se aposentar, ela não teria avaliado todas as consequências de sua escolha é, acima de tudo, tratá-la como incapaz de tomar suas próprias decisões de forma responsável. Ter ocupado, até o fim, a cadeira que era dela por direito foi uma postura coerente com o que sempre defendeu: "As mulheres pertencem a todos os lugares onde as decisões são tomadas". As próximas gerações agradecem.

Flavia Annenberg

Advogada, mestra pela Faculdade de Direito da USP e pela Harvard Law School

Marina Lima

Advogada e mestra pela Faculdade de Direito da USP

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