Putin flerta com Terceira Guerra Mundial em jogada arriscada
Russo tenta consolidar ganhos na Ucrânia, mas conflito nuclear deixou de ser especulação
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O que quer Vladimir Putin? A questão ronda a cabeça de políticos e observadores militares no Ocidente e na Rússia desde que o ex-espião emergiu como o czar do século 21, na virada dos anos 2000.
Esta opacidade talvez seja seu maior ativo, dado que se encaixa tanto na descrição elogiosa de suas capacidades de sobrevivência e consolidação de poder nessas duas décadas quanto na acusação de ser mais um líder tático e reativo do que um pensador estratégico.
Sua campanha na Ucrânia, contudo, obedece a uma linha do tempo lógica de queixas, sinalizações e gestos concretos. Lida como neoimperialista no Ocidente, ela emula o pensamento da elite russa que agora se vê apavorada pelo espiralar de fatos na guerra em curso.
Em resumo, é uma visão de que o Ocidente aproveitou-se da fraqueza russa após a dissolução da União Soviética, em 1991, com um cerco econômico e militar crescente. Ela é calcada em várias realidades inegáveis, como a expansão da Otan e a necessidade do maior país do mundo de ver suas fronteiras estratégicas protegidas após a perda de territórios tampão: seja a Ucrânia, a Geórgia ou o Cazaquistão.
Mas também desconsidera outras coisas, a começar a parceria energética simbiótica com a Europa, que agora cobra seu preço com a ameaça de um inverno frio e famélico no continente, mas também a posição dessa elite no mundo globalizado.
Nesse sentido, a invasão russa, vista por muitas pessoas próximas do Kremlin como impossível pelo custo que acarretaria, é uma paradoxal profecia autorrealizável. Desde o famoso discurso de Munique em 2004, Putin sempre disse o que lhe incomodava e marchava ante o mutismo ocidental.
Foi assim quando lutou na Geórgia em 2008 e ao anexar a Crimeia e incitar a guerra do Donbass em 2014. Isso fora a ação em frentes secundárias, como a guerra civil síria em 2015, o conflito no Cáucaso em 2020 ou a repressão à revolta cazaque de janeiro passado. Para americano ver ou não, foram ações.
Só em 2021, Putin promoveu duas grandes mobilizações para ameaçar resolver a questão de sua fronteira com a Europa "manu militari". Não foi ouvido. Apesar de ser algo próximo de um Estado falido, a Ucrânia é soberana e uma percepção dupla pesou no Ocidente: por um lado, a ideia de que Putin não pararia ali; por outro, a conveniência de enfraquecer o maior aliado da China sem arriscar uma guerra nuclear.
Até aqui. A campanha russa foi marcada, na primeira fase em que fracassou em tomar Kiev no susto e na terceira, que viu a queda das áreas ocupadas em Kharkiv, por um misto de soberba e inépcia tática, aliadas à falta de pessoal suficiente. Mais sucesso ocorreu na segunda, quando o Kremlin focou o Donbass e a consolidação da ponte terrestre entre a região e a Crimeia.
Ainda assim, as vozes dos falcões da elite russa, muitos egressos dos serviços de segurança como o poderoso chefe da Guarda Nacional, Viktor Zolotov, sempre clamaram por um endurecimento que Putin evitava por temer mais desgaste doméstico —apesar de manter a retórica antiocidental afiada.
Agora, recorre a uma bomba atômica política, preparando a anexação de áreas não totalmente sob seu controle e anunciando a mobilização de 300 mil homens. O problema, para o presidente e para o Ocidente, é que esse processo embute um risco muito aumentado de algum artefato nuclear real acabar entrando em uso.
O desenho é simples: se o Donbass é russo e a Ucrânia o ataca com ajuda ocidental, então é a Rússia sob ataque e isso remete à doutrina nuclear assinada por Putin em 2020.
Segundo ela, a bomba será usada se o país for atacado com armas de destruição em massa, o que é meio óbvio. Mas também "no caso de agressão contra a Federação Russa com armas convencionais, quando a própria existência do Estado estiver sob ameaça".
No discurso em que anunciou a guerra, em 24 de feveiro, Putin disse: "Para o nosso país, [a Ucrânia se aliar ao Ocidente] é uma questão de vida ou morte, do nosso futuro histórico como nação. Isso não é exagero, é um fato. Não é só uma ameaça bem real a nossos interesses, mas para a própria existência do Estado e de sua soberania".
Retórica, claro, pois uma Terceira Guerra Mundial acabaria com o mundo como o conhecemos, e por um tempo deu certo. Mas deixa aberta a possibilidade, em especial do uso de ogivas táticas, aquelas de baixa potência e pouca contaminação residual, para uso contra tropas.
O problema é que seu emprego pode vencer batalhas, mas para vencer guerras o degrau é acima: armas estratégicas, que arrasam cidades inteiras e inviabilizam o solo. A noção de que um ataque com uma ogiva menor levaria a uma escalada é convencional por um bom motivo.
O risco, portanto, deixa o campo da especulação novamente, como fez em alguns momentos desta guerra. Putin visa consolidar seus ganhos até aqui, nada desprezíveis e que dificultam vida da Ucrânia como Estado, chantageando uma Europa assustada com o inverno à frente. Talvez namore uma saída que possa vender como honrosa.
A China segue em sua própria opacidade: a decisão do aliado veio depois do encontro entre Putin e Xi Jinping na semana passada, assim como a guerra foi iniciada 20 dias depois da rodada anterior, levando à suposição de uma bênção de Pequim a um jogo no qual tem muito a perder.
O faz com sua jogada mais arriscada até aqui, sem garantia de que vai dar certo e talvez o obrigando a cobrir a aposta feita para não perder a cadeira. Se tem isso no horizonte das possibilidades, é insondável —e, justamente por isso, angustiante.
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